Análise Crítica: Crônica de uma Morte Anunciada de García Márquez
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Neste trabalho, há uma conexão entre a crônica literária e a jornalística. García Márquez é um jornalista e utiliza técnicas jornalísticas que servem para dar credibilidade à história. Isso não significa que ela seja real; é baseada em uma história verdadeira, mas a narrativa é uma criação literária.
A criação literária de García Márquez e a realidade têm semelhanças, mas também diferenças que separam a literatura do jornalismo. A intertextualidade e as isotopias de suas próprias obras nos direcionam para o gênero literário, distanciando-o do jornalismo puro.
Crônica de uma Morte Anunciada (CDMA) apresenta um dilema entre verdade e ficção. O primeiro indício de que estamos no campo da ficção é dado pelo autor em seu artigo "A História da História". Apresentam-se o autor-narrador e um pesquisador que resgata de sua memória e dos dados de testemunho elementos para ajudar a reconstruir a história. Por outro lado, o autor opta por não focar nos elementos da tragédia em si, mas em suas causas.
Além disso, há duas narrativas dentro do romance: a tragédia da morte de Santiago Nasar, contada em forma de história e onde o autor trabalha a ideia do fim dos tempos, e o drama particular do caso de amor entre Bayardo e Ângela, que se aproxima da crônica e onde o autor mantém o tempo linear.
A estrutura do livro é fechada e circular. A morte abre e fecha o romance. Ademais, o romance avança no tempo, mas cada capítulo acrescenta novas informações ao mesmo período de tempo narrado. A força da estrutura reside na repetição da palavra 'morte'. Além disso, a complexidade e o rigor do tratamento do tempo são mais característicos da novela do que do jornalismo. O mesmo se aplica aos espaços; a estrutura tende a ser fechada e abafada.
A oralidade é uma característica de García Márquez. Isso pode ser visto na novela, onde os nomes estão ligados à religião, e a religião, por sua vez, está ligada à morte (como Jesus, Lázaro, Jaime, Ângela, Pedro...).
No romance, encontramos temas como amor, violência, solidão, machismo, honra e destino. Um conjunto de valores e contradições que vai muito além de uma simples notícia. A ambiguidade e a falta de respostas claras (Quem roubou a virgindade de Ângela Vicário?) são outra pedra fundamental do romance.
A questão dos registros linguísticos é sutil na leitura da obra, mas percebe-se uma variação que vai do coloquial colombiano à poesia literária, passando por um registro mais formal ou reverente.
A perspectiva utilizada pelo autor é a introdução de um narrador que é o mesmo e que pode mover-se para a frente e para trás na estrutura temporal do romance. A polifonia é a principal característica dominada pelo autor-narrador. O narrador divide-se em dois: o autor que testemunhou a ação e investiga, e outro em terceira pessoa, onisciente e impessoal, que narra a história. A polifonia completa-se com as vozes de outras testemunhas.
CDMA (Crônica de uma Morte Anunciada) convida a ser lido como uma história de detetive. Estamos diante de um verdadeiro thriller que quebra o molde do gênero através da paródia, da ironia, do absurdo e, especialmente, porque esconde o verdadeiro enigma para a polícia: quem roubou a virgindade de Ângela Vicário? García Márquez pretendia escrever um thriller perfeito, em que nem todos os mistérios são resolvidos, e através desse gênero, ele mostra o sistema de valores da sociedade, a falta de sentido da barbárie, a facilidade com que a comunidade pode desculpar-se, convertendo culpados em inocentes, a solidão dos mortos e dos vivos.
Presença e Senso de Destino
O título [do romance] contém todos os elementos básicos do destino: há uma morte que foi anunciada há muito tempo, e há uma testemunha que se limita a dizer o que aconteceu, mas sem intervir. A novela é apresentada como uma incursão no mundo do fatalismo. Santiago Nasar é condenado, fatalmente. Não é possível corrigir isso; é um elemento estrutural sem o qual a obra não seria o que é.
Na novela, o destino, o fatum, domina a história até que ela se torne uma tragédia de sentido fatal. Mas aqui é a estupidez humana, e não os deuses, que converge para o mesmo resultado trágico.
As formas em que a inépcia humana se manifesta na obra são variadas:
Contradição. Todas as pessoas sabem que os Vicário vão matar Santiago Nasar, mas ele, a vítima, não sabe até o final e, com certeza, não entende nada. A contradição apresenta-se como uma realidade da trama, a estupidez humana, tão convincente, e contribui para a atmosfera trágica da história.
A segunda contradição é que, em uma sociedade fechada e puritana, onde todos se conhecem bem, Ângela Vicário poderia ter perdido a virgindade com um rapaz da aldeia, e esse fato não ser conhecido. Isso aparece como pura desgraça do destino.
Ambiguidade. Há muitos fatos que não ficam claros nem para os personagens, nem para o leitor, nem mesmo para o narrador. O livro está organizado em torno da ambiguidade essencial sobre quem cometeu o crime de honra que vitimou Ângela Vicário. O leitor fica com a sensação de que Santiago Nasar foi morto por algo que talvez não tenha cometido. Mas, quando Ângela, muitos anos mais tarde, pode dar a sua versão, ela a confirma, mas ninguém acredita nela.
Paralelamente a estas, há outras ambiguidades fundamentais que contribuem para o ambiente fatal. Por exemplo, as diferentes versões sobre o clima no dia do incidente, a identidade da pessoa que deixou um bilhete debaixo da porta da casa do protagonista, ou se os irmãos Vicário estavam bêbados antes de matá-lo.
Acidentes ou coincidências. Existem muitos, alguns particularmente mortais. Santiago, que quase nunca entrava em casa pela porta da frente, fê-lo justamente dessa vez... onde os Vicário o esperavam. Luisa Santiago, a mãe de Santiago, que sentiu que algo trágico aconteceria, nesse dia não sentiu. Cristo Bedoya, o amigo, que era o único que poderia avisá-lo, não foi encontrado. O bilhete deixado debaixo da porta avisando do perigo não foi visto antes do crime. Embora a família de Flora Miguel nunca se levantasse cedo, Santiago foi para casa mais cedo...
Todos estes incidentes são erros humanos que levam à tragédia fatal.
Finalmente, os moradores são particularmente ineptos ao interpretar os acontecimentos à sua volta. Eles erram e permitem a tragédia. Os açougueiros não avisam os Vicário para desistir, porque achavam que era coisa de bêbado...; Sinking Loaiza não adverte sobre o perigo, porque estava tão feliz que pensou que tudo tinha sido combinado. Plácida Linero, interpretando mal (ou não) os sonhos do filho, além disso, fechou a porta da casa quando viu os Vicário, porque achou que queriam entrar para matá-lo, condenando assim o filho, que não escapou. Cristo Bedoya não pode proteger o amigo porque pensou que ele estava tomando café da manhã na casa da família do narrador. O padre Carmen Amador, ao vê-lo saudável, pensou que era tudo uma brincadeira.
Em conclusão, parece claro que as personagens deste romance são escravos impotentes do fatum, que se manifesta através dos muitos erros cometidos pelos figurantes da tragédia. Tantos erros e acasos levam ao mal. Mas será que a moral substitui o destino? Se o crime já foi cometido, que culpa tem quem participou de uma forma ou de outra? Parece que não. No entanto, no início do capítulo 5, são enumeradas algumas consequências que alguns personagens sofrem, parecendo que isso serve para expiar o crime.
Presença e Sentido de Honra
A ação de Crônica de uma Morte Anunciada desenvolve-se num ambiente de coincidências, contradições e erros (estupidez humana) que permitem a tragédia. Anos se passaram e os moradores não têm as mesmas memórias. Existem apenas dois pontos claros e firmes: o assassinato de Santiago Nasar e a crença de todos na validade do seu código de honra. A única coisa em que os moradores da cidade concordam é sobre um valor, a honra, que, vista à sua maneira, só pode resultar em tragédia. Isso é crucial para a ironia central do romance.
Santiago Nasar teve a infelicidade de viver numa aldeia de valores invertidos, pouco razoáveis. O autor não descreve diretamente esses valores na sua obra, mas eles são expostos no que as personagens dizem e fazem. Logo no início do romance, o narrador confessa que esteve com uma prostituta, e que isso "destruiu a virgindade" da sua geração. Não se pense que o conceito de moral das pessoas censure a prostituição. Pelo contrário, é algo bem visto na aldeia.
Outra inversão moral vista nos personagens da aldeia é o seu materialismo. Por exemplo, Bayardo San Román esbanja o seu dinheiro num casamento quase inacreditável, e mostra sinais de não entender por que o viúvo se recusa por muito tempo a vender a sua casa, mesmo Bayardo tendo oferecido muito dinheiro.
Mais uma referência ao sentido sexual da honra e às regras da parentalidade. Sobre os Vicário, o narrador diz que os irmãos foram criados para serem homens e as irmãs foram educadas para casar. Na verdade, os irmãos Vicario mataram Santiago Nasar para cumprir a educação que receberam. O assassinato é cumprir um dever que eles não parecem gostar. Assim, são considerados inocentes e, claro, nunca se arrependeram. Porquê? Porque sabiam que tinham agido em conformidade com o código vigente da honra do seu povo, aceite também pelas mulheres. Quando, por exemplo, os irmãos Vicario dizem à mãe de Prudência Cotes que não têm tempo para tomar café, ela responde que imagina, pois a honra não espera. E acrescenta que a sua filha nunca se casaria com ele se ele falhasse como homem.
O código de honra popular é tão completamente aceite que ninguém na cidade se pergunta por que é irrelevante que uma prostituta tenha "devastado a virgindade" de um homem da geração, enquanto é, e tragicamente, relevante que Ângela Vicário a tenha perdido com "ninguém". Dentro desse código, está também a ideia de que se uma mulher perdeu a virgindade fora do casamento, é porque foi forçada contra a sua vontade.
E o advogado de defesa dos irmãos aceitou o código de honra popular, e a maioria das pessoas da aldeia também o aceita, em parte porque a própria comunidade não se exonera de culpa por não ter prevenido o crime.
Em conclusão, podemos dizer que García Márquez quis expressar com este romance uma crítica irónica ao código de honra que prevalece na aldeia dos Vicário, que é o verdadeiro desencadeante da tragédia na novela.