Aplicação do Código Florestal em Cidades Brasileiras

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Contexto Histórico e o Paradoxo Urbano-Ambiental

A formação histórica de parte significativa das cidades brasileiras ao longo das décadas deu-se justamente em locais que, com o Código Florestal, passaram a ser considerados intocáveis. Nesse sentido, por exemplo, a localização visual privilegiada dos topos de morro foi valorizada para a construção de monumentos, fortificações, prédios públicos e residências; as faixas marginais de rios foram utilizadas para a construção de residências (dada a facilidade do acesso à água) e mesmo vias, em ambos os lados, com capeamento dos leitos, ações essas inclusive incentivadas por políticas públicas. Ilustrando tal afirmação, Anaiza Miranda afirma que:

Segundo a história do urbanismo brasileiro, o mesmo originou-se de práticas oriundas dos povos ibéricos, para os quais a ocupação dos topos de morros, das áreas ciliares e várzeas era uma situação mais do que normal, e determinada segundo os padrões urbanísticos e sanitários da era medieval e moderna. 23

Tal paradoxo faz com que juridicamente se discuta a aplicabilidade do Código Florestal nas cidades. Superar esta questão é fundamental, uma vez que, caso não fosse possível aplicar o Código Florestal nos limites urbanos, não haveria que se falar em áreas de preservação permanente nas cidades e, consequentemente, em possibilidades de regularização das intervenções ali ocorridas.

O Debate Jurídico sobre a Aplicação do Código Florestal

A Controvérsia do Art. 2º, Parágrafo Único

A discussão acirrou-se a partir da inserção do parágrafo único do art. 2º do Código Florestal pela Lei 7.803/99, estabelecendo-se que:

No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo.

Tal dispositivo foi inserido justamente para afirmar a aplicabilidade do Código Florestal nas áreas urbanas. No entanto, ele chegou a ser interpretado por alguns justamente em sentido contrário. Quis-se fazer entender que o legislador determinou que, nas áreas urbanas, somente se observará o disposto nos planos diretores das cidades e nas leis de uso do solo. Nesse sentido, o magistrado Ronald Pietre entende, em manifestação doutrinária, que “o simples acatamento dos ditames do Código Florestal, por si só, inviabiliza qualquer projeto de ocupação ordenada do solo urbano”24. O mesmo autor, ignorando todo o arcabouço protetivo estabelecido pela Constituição Federal, chega até a admitir a aplicação do Código Florestal nas cidades, mas consigna que:

A expressão ”princípios e limites” é de conteúdo programático, servindo apenas como diretriz a ser observada pelo legislador municipal. Na hipótese de pretender indicar as mesmas áreas do art. 2º como de preservação permanente, a lei municipal não poderá ser mais rigorosa que o Código Florestal, em virtude dos “limites” fixados na norma.25

Obviamente que tal interpretação não tem cabimento, seja porque afronta a competência dos entes públicos de proteção ao meio ambiente, sendo, portanto, inconstitucional, seja porque o próprio dispositivo legal em comento é expresso ao dispor que a legislação urbanística será aplicada respeitando-se os princípios e limites (mínimos) estabelecidos pelo Código Florestal.26 Conforme ensina Guilherme Purvin, “o art. 2º do Código Florestal tem natureza nitidamente ambiental e constitui norma geral, limitadora da autonomia administrativa dos municípios.”27 (grifos no original)

A Solução da Medida Provisória 2.166-67/01

Ainda que ressoem vozes contrárias, a divergência foi solucionada somente a partir da edição da Medida Provisória 2.166-67/01 que, ao modificar o art. 4º do Código Florestal, inseriu nele o parágrafo 2º que diz que:

A supressão de vegetação em área de preservação permanente situada em área urbana, dependerá de autorização do órgão ambiental competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente fundamentada em parecer técnico.

Ora, se é possível excepcionalmente a supressão de vegetação em APP em área urbana, obviamente que a regra geral é manutenção de tais locais intocados. Como bem observam Daniel Roberto Fink e Márcio Pereira:

Ao contrário do que parece, este parágrafo não constitui uma exceção, mas sim uma advertência, pois determina que, em caso de áreas urbanas, além de serem respeitadas as leis de interesse local – urbanísticas -, deve-se atender a faixa marginal mínima estabelecida no Código Florestal, aplicando-se este caso aquelas leis locais estabeleçam restrições mais brandas.

Reforços Normativos (CONAMA, Veto Presidencial)

Outro reforço a este entendimento foi dado com o advento da Resolução CONAMA 369/06, que será abordada no próximo tópico, que justamente prevê hipóteses de regularização fundiária de APPs em área urbana.29 Sendo assim, indubitável é a aplicação do Código Florestal também nas cidades. A legislação brasileira confirmou em várias oportunidades tal opção política. Registra-se, por oportuno, a existência de tentativa legislativa de impedir a aplicação do Código Florestal em zona urbana através da aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei 2.109/99 (que se transformou na Lei 10.931/04) contendo dispositivo que estabelecia que “na produção imobiliária, seja por incorporação ou parcelamento do solo, em áreas urbanas e de expansão urbana, não se aplicam os dispositivos da Lei n. 4.771/65” (art. 65). Felizmente, o malfadado dispositivo foi vetado pelo Presidente da República com fundamento na violação ao art. 225 da Constituição Federal.30 O chefe do Poder Executivo parece ter tido em mente que entendimento contrário não seria possível se considerarmos que a extinção das APPs nas cidades contribuiria para aumentar ainda mais as tragédias das chuvas e diminuir, sob diversos aspectos, a qualidade da vida urbana.

Benefícios das APPs Urbanas e Cidades Sustentáveis

A respeito dos benefícios trazidos pela manutenção das áreas de preservação permanente no meio urbano, Elson Servilha aponta o seguinte:

No meio urbano as APP têm o potencial de funcionar como amenizadores de temperatura (controle climático), diminuir os ruídos e o nível de gás carbônico (melhoria da qualidade do ar), promover equilíbrio de distúrbios do meio (proteção contra enchentes e secas), proteger as bacias hidrográficas para abastecimento de águas limpas (controle e suprimento de águas), proporcionar abrigo para a fauna silvestre (controle biológico e refúgio da fauna), promover a melhoria da saúde mental e física da população que as frequenta (função recreacional e cultural), e contribuir para o melhoramento estético da paisagem.31

A conclusão pela aplicabilidade do Código Florestal nos limites urbanos nada mais é do que assentar o direito às cidades sustentáveis, de matriz constitucional e materializado no Estatuto das Cidades, que será objeto de estudo no tópico seguinte. Nesse sentido, dentre as diretrizes gerais previstas na Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade), está assegurado a ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar, dentre outros:

“a deterioração das áreas urbanizadas” e a “poluição e a degradação ambiental” (art. 2º, VI, f e g).32

Seguramente, uma das principais formas de garantir o alcance de tais diretrizes é a manutenção das APPs nas cidades. Assim, nas palavras de Guilherme Purvin:

Se considerarmos que a degradação das matas ciliares e a impermeabilização das áreas de várzea constituem talvez os principais geradores de enchentes e inundações nas grandes cidades, chegaremos à conclusão de que o descumprimento do disposto no art. 2º, parágrafo único, do Código Florestal, nas áreas urbanas acarreta um custo social elevadíssimo para os cofres públicos e sacrifícios incomensuráveis para a população atingida pelas calamidades públicas.33

Conflito Aparente: Código Florestal vs. Lei de Parcelamento

Firmada a aplicabilidade do Código Florestal em zona urbana, deve-se ainda mencionar a discussão existente na doutrina a respeito do aparente conflito entre os limites da APP estabelecidos em seu art. 2º com os limites da faixa não edificável previsto no art. 4º, III, da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/79). Referido dispositivo reza que numa faixa de 15 metros de largura ao longo de corpos hídricos localizados em terrenos objeto de parcelamento nada pode ser construído.34 Assim, de 1979 a 1986, a faixa não edificável de 15 metros da Lei de Parcelamento do Solo Urbano prevaleceu sobre a faixa marginal de 5 metros do Código Florestal em loteamentos urbanos. De 1986 em diante, com as alterações promovidas pela Lei 7.511/86, a faixa marginal ampliada para 30 metros do Código Florestal sobrepôs a faixa não edificável da legislação urbanística. Ante tais circunstâncias, muitos chegaram a defender a revogação do dispositivo da Lei 6.766/79 pela norma mais recente.

Distinção de Objetos Tutelados

Isto não ocorre, sendo o conflito meramente aparente, uma vez que o objeto de ambas as leis é diverso. O Código Florestal tutela o meio ambiente enquanto a Lei de Parcelamento do Solo Urbano tutela a ordem urbanística.35 No primeiro caso, a área é intocada, devendo manter-se ou recuperar-se a vegetação. No segundo caso, não há esta exigência, vedando-se apenas a edificação e não a supressão da vegetação. Guilherme Purvin, ao qual se socorre mais uma vez, é quem melhor desenvolve a solução para a discussão. Nesse sentido:

A Lei n. 6.766/79 dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e, ao tratar em seu art. 4º, inc. III, de faixas non aedificandi, não teve como objetivo promover a proteção da biodiversidade. Se alguma dúvida poderia pairar no tocante às faixas ao longo de águas correntes ou dormentes, ela é afastada na sequência do dispositivo, que cuida também das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias. Ora, não obstante essas faixas possam desempenhar um importante papel como corredores ecológicos úteis para o fluxo gênico da biodiversidade, em regra não existe, nessas áreas (margens de rodovias), valores ambientais de maior significado a serem tutelados, exceto, em alguns casos, a paisagem. O bem tutelado, na Lei n. 6.766/79, é a segurança da população. Qualquer construção que fosse autorizada dentro da faixa de 15 metros das margens de rios, rodovias ou ferrovias traria risco de vida à população que a utilizasse, daí porque, com muita propriedade, o legislador estabeleceu tais requisitos urbanísticos para loteamento urbano. Já o Código Florestal, em seu art. 2º, letra “a”, teve em mira a função ambiental das matas ciliares, a preservação dos recursos hídricos, a estabilidade ecológica, o fluxo gênico. Não está em questão, aqui, a proteção da segurança dos moradores das cidades, conquanto também as áreas de preservação permanente também visem a assegurar o bem estar das populações humanas. 36

Inaplicabilidade da Reserva Legal em Zona Urbana

Ressalte-se que toda a discussão deste tópico apresenta interesse apenas em relação às áreas de preservação permanente, uma vez que, em relação às reservas legais, não há divergência relevante a respeito de sua inaplicabilidade em zona urbana.37 De qualquer maneira, o Código Florestal, a partir da redação dada pela Medida Provisória 2.166-67/01, ao estabelecer os limites mínimos da reserva legal, espancou qualquer dúvida ao referir-se expressamente apenas às propriedades rurais.

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