O Caso Garrett: Entre a Memória e o Esquecimento

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A ideia de que a literatura não é apenas a sua produção corrente, mas a história que permite a manutenção da sua vitalidade, parece correr o risco de se transformar, se não em sintoma de presunção ridícula, em sinal de assustador nacionalismo. O respeito, neste quadro, pelas marcas materiais deixadas pelos autores admiráveis, quando não se considera questão de somenos, remete-se com frequência ao sótão de um desarrumo de velharias, com as quais se preocupam tão-só os que se recusam a abraçar o presente que lhes pertence. Estamos diante da pura moda intelectual, manipulada como qualquer moda por uma escassa elite, passageiramente na berlinda, que não exclui o advento de um conjunto de opções inversas na próxima estação.

Desde pelo menos o início deste ano, e apesar de uns quantos protestos esparsos, erguidos por um ou dois desses foros cívicos que entre nós dificilmente obtêm resultados substanciais, a casa na Rua de Saraiva de Carvalho em Campo de Ourique, última residência de Almeida Garrett, entrou em processo irreversível de arrasamento. Chamada a prestar o seu testemunho sobre o acontecido, a autorizada voz de José-Augusto França verberou como «ato ignóbil do ponto de vista moral» aquilo que encarou como um generoso convite, dirigido ao «pato-bravo», para o regabofe da demolição e construção do que quer que seja, leia-se no caso, «do condomínio de luxo». O facto de a propriedade do imóvel arrasado caber a um membro do governo em exercício, o ministro da Economia, Manuel Pinho, claramente mais empolgado pelo pragmatismo dos seus privados interesses do que pela fantasia das evanescências nacionais, acrescia à justa indignação de José-Augusto França.

Perante uma casa garrettiana jacente, e no quase absoluto silêncio dos mais interventivos, sempre atentíssimos às notícias que vêm do oeste da Europa, mas sempre distraídos, salvo quando se trata da defesa da sua elite minúscula, do que vai sucedendo no triste país, é natural que o destino da casa de Almeida Garrett em Lisboa tenha trazido à nossa atenção a sorte do lugar, ainda existente, onde o escritor nasceu. De facto, foi no Porto, e na Rua do Dr. Barbosa de Castro, antiga do Calvário, que João Baptista Leitão de Almeida Garrett viu a luz aos 4 de fevereiro de 1799, tendo aí vivido até 1804, data em que a família se transferiu para Gaia. É um desses prédios esguios que já mereceram a alcunha de «tiras», composto por três andares, rés-do-chão e água-furtada. Em 1864, a então Câmara Municipal, porventura mais zelosa do património da cultura do que a vigente, que navega em marés de algum grosso filistinismo, descerrou na fachada uma placa farfalhuda, toda liras e folhas de louro, a festejar o célebre político e talentoso letrado.

Dizem-nos que um dos óbices maiores à compra do edifício pelo Município tripeiro reside na desconfortável circunstância de no tal rés-do-chão se albergar, surpresa das surpresas da coisa lusitana!, nada mais, nada menos do que uma mercearia. Partindo embora do princípio de que o espólio do prosador das Viagens na Minha Terra não justifica um museu com pompa e circunstância, mas apenas um local dignamente evocativo, não se percebe por que razão não deva o lojista de secos e molhados ceder a sua sede a uma das nossas eminências supremas, na coabitação que só o dignificaria. Não se pretende que o comerciante faça uso de uma magnanimidade de príncipe, retirando-se discretamente, a fim de propiciar o reingresso do poeta de Camões e Dona Branca, mas que a autarquia negoceie com ele, e já que de negócio se cura por regra em quejandas situações, a melhor estratégia para a coincidência do aviamento mercantil com a homenagem a uma figura de Portugal.

Numa página irresistível, e oportuníssima nesta altura, de O Arco de Sant'Ana, Garrett disserta com vagar sobre l'épicier, «espécie rara dantes, mas que atualmente constitui a maioria das grandes cidades, dos grandes focos de população civilizada.» E aduz, «Mole como a sua manteiga, estúpido como os seus macarrões, pateta como os seus chouriços, e rançoso como o toicinho que vende, o merceeiro – l'épicier – é o tipo dessa bastarda aristocracia da plebe que se propagou e cresceu tão numerosa.»

A reflexão sobre as possíveis declinações que esta súmula engendrar, reflexão que obviamente se não endereça ao sobrevivente épicier dos nossos dias, se não conseguir evitar o abate da única casa de Almeida Garrett que subsiste, haverá de estimular de algum modo a permanência da intervenção do escritor. Tudo isto, é óbvio, se não vencer a modernaça proposta, avançada por Vera Futscher Pereira e Jorge Colaço, entusiasmadíssimos com a perspetiva de «uma reconstrução virtual a três dimensões da casa da Rua de Saraiva de Carvalho (...), a qual «assim ficaria preservada para memória futura».

É provável que numa época em que zurzir os elementos do governo, sejam eles de esquerda ou de direita, conforme indício de inteligente esquerdismo, massacrar o pobre do merceeiro, entretanto alçado ao plinto das massas trabalhadoras, ou da pequena empresa vitimizada, equivalha a mostra de direitismo burro. De qualquer maneira, e não há por onde fugir a isto, temos um ministro e um merceeiro, não afirmo que combinados, mas convergentes, a tolher a respiração normal das belas-letras lusas. «Sabe-se lá com que propósitos», acrescentariam sem dúvida os histéricos da conspiração.

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