Casos Práticos de Direito Internacional Privado
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Caso 1: Capacidade para Casar
Cenário
Alim, de 20 anos, cidadão egípcio, que sempre residiu no Cairo, enamorou-se de Bianca, de 16 anos, estudante, de nacionalidade brasileira e venezuelana, com residência habitual no Cairo. Bianca, antes de viver no Egito, sempre vivera no Rio de Janeiro.
Alim e Bianca, de férias em Lisboa, pretendem casar-se e ficam surpreendidos quando o Conservador do Registo Civil os informa de que só celebra o casamento se os pais de Bianca a autorizarem a casar.
Admitindo que:
- a) As normas de conflitos do Direito Internacional Privado brasileiro e do venezuelano preveem que a capacidade da pessoa para contrair casamento é regulada pela lei do seu domicílio;
- b) A norma de conflitos egípcia prevê que a capacidade da pessoa para contrair casamento é regulada pela lei da sua nacionalidade;
- c) O sistema de Direito Internacional Privado brasileiro e o egípcio consagram a referência material;
- d) O sistema de Direito Internacional Privado venezuelano prevê que, no caso de o Direito estrangeiro declarar aplicável o Direito venezuelano, este deve aplicar-se; no caso de o Direito estrangeiro declarar aplicável o Direito de um Estado terceiro que, por sua vez, também se declare competente, deverá aplicar-se o Direito interno deste Estado;
- e) Todas as ordens jurídicas em presença consideram Bianca domiciliada no Egito;
De acordo com o Direito brasileiro e venezuelano a maioridade atinge-se aos 18 anos, mas os menores de 18 anos e maiores de 16 anos podem casar com autorização dos pais; já de acordo com o Direito egípcio, as mulheres têm capacidade para casar a partir dos 16 anos e os homens a partir dos 18 anos;
diga se Bianca necessitava da autorização dos seus pais para casar.
Análise
Está em causa a capacidade de Bianca para contrair casamento com Alim;
- o art. 49° CC tem como conceito-quadro a "capacidade para contrair casamento ou celebrar a convenção antenupcial"; interpretação do conceito-quadro;
- o art. 49° CC determina a aplicação da lei pessoal de cada nubente; nos termos do art. 31°, n° 1, CC, a lei pessoal é a lei da nacionalidade;
- de acordo com o art. 28° da Lei da Nacionalidade, caso o pluri-nacional não tenha residência habitual num dos Estados da sua nacionalidade, releva a nacionalidade do Estado com o qual o sujeito mantenha uma vinculação mais estreita;
- a nacionalidade relevante seria a brasileira, pois era com o Brasil que Bianca apresentava a ligação mais estreita;
- a norma de conflitos portuguesa remete para a lei brasileira; a norma de conflitos brasileira remete para a lei do domicílio da nubente, no caso, a lei egípcia; a norma de conflitos egípcia remete para a lei da nacionalidade do nubente, a lei brasileira; esquematicamente: L1 (art. 49º) → L2 (lei brasileira) → L3 (lei egípcia) → L2 (lei brasileira);
- quer a lei brasileira, quer a lei egípcia, ao praticar a referência material, aplicam a lei designada pela sua norma de conflitos; logo, a lei brasileira aplica a lei material egípcia e a lei egípcia aplica a lei material brasileira;
- estando perante uma situação de reenvio para uma terceira lei, deve verificar-se se estão preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 1, CC;
- os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 1, do CC, não estão preenchidos pois, apesar de a lei portuguesa remeter para uma lei estrangeira (a lei brasileira) e de a lei brasileira aplicar uma terceira lei (a lei egípcia), esta não se considera competente para regular a situação, pois a lei egípcia aplica a lei brasileira; ou seja, no caso, L2 aplica L3 e L3 aplica L2; não estando preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 1, CC, rege o art. 16° CC, que consagra a referência material, e os tribunais portugueses vão aplicar a lei brasileira;
- de acordo com a lei material brasileira os menores de 18 anos apenas podem casar com autorização dos pais; interpretação e caracterização desta norma material brasileira; esta norma material brasileira é subsumível no conceito-quadro do art. 49° CC; aplicação do art. 15° CC; Bianca teria de pedir a autorização aos pais para casar.
Caso 2: Relações entre Cônjuges e Casa de Morada de Família
Cenário
Alexander, suíço, contraiu matrimónio, em Berna, com Bridget, também suíça, no regime de separação de bens.
Após o casamento, o casal ficou a residir habitualmente em Itália, onde já antes ambos viviam, uma vez que Bridget aí tinha um palacete que herdara, por morte de seu tio Cassiano, português, anos antes do casamento com Alexander.
Passados que são cinco anos, e atentas as elevadas despesas de manutenção do palacete, Bridget - que se encontra em Lisboa, a trabalhar por um período de 6 meses - decide vendê-lo e adquirir uma casa mais modesta. No entanto, Alexander opõe-se a esta resolução da mulher e afirma que, apesar de o bem ser de Bridget, uma vez que se trata da casa de morada de família do casal, sempre seria necessário o seu consentimento para vendê-lo.
Admitindo que:
- a) Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes;
- b) O Direito Internacional Privado suíço regula as relações entre os cônjuges e o regime de bens do casal pela lei do domicílio comum do casal;
- c) O Direito Internacional Privado italiano regula as relações entre os cônjuges e o regime de bens do casal pela lei da nacionalidade comum do casal;
- d) Todas as ordens jurídicas em presença consideram Alexander e Bridget domiciliados em Itália;
- e) O Direito Internacional Privado suíço aceita o retorno para a sua própria lei; também o Direito Internacional Privado italiano aceita o retorno para a sua própria lei;
- f) De acordo com o art. 169 do Código Civil suíço, independentemente do regime de bens vigente, um dos cônjuges não pode alienar a casa de morada de família sem o consentimento do outro cônjuge. O Direito material italiano não prevê qualquer regra semelhante a esta;
diga, fundamentando devidamente a sua resposta, se Bridget necessita do consentimento de Alexander para vender o palacete sito em Itália.
Análise
Está em causa uma situação que se prende com as relações entre os cônjuges, independentemente do regime de bens; importa saber se, independentemente do regime de bens do casal, é necessário o consentimento de ambos para vender a casa de morada de família, que é propriedade de apenas um dos cônjuges;
- o art. 52° CC tem como conceito-quadro "relações entre os cônjuges"; interpretação do conceito-quadro;
- o art. 52° CC determina qual a lei aplicável para regular as relações entre os cônjuges independentemente do regime de bens que vigore no casamento;
- a norma de conflitos portuguesa remete para a lei da nacionalidade comum dos cônjuges, no caso, a lei suíça; a norma de conflitos suíça remete para a lei do domicílio comum do casal, no caso, a lei italiana; a norma de conflitos italiana remete para a lei da nacionalidade comum dos cônjuges, a lei suíça; esquematicamente: L1 (art. 52°, n° 1) → L2 (lei suíça) → L3 (lei italiana) → L2 (lei suíça);
- quer a lei suíça, quer a lei italiana aceitam o retorno para a sua própria lei, logo, a lei suíça aplica a sua lei material e a lei italiana também aplica a sua lei material;
- estando perante uma situação de reenvio para uma terceira lei, importa verificar se estão preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 1;
os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 1, do CC, não estão preenchidos pois, apesar de a lei portuguesa remeter para uma lei estrangeira (a lei suíça), de a lei suíça remeter para uma terceira lei (a lei italiana), e de esta se considerar a si própria competente, a lei suíça não aplica a lei italiana; ou seja, no caso, L2 aplica L2 e L3 aplica L3;
- não estando preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 1, CC, é de aplicar o art. 16° CC, que consagra a referência material, e os tribunais portugueses vão aplicar a lei suíça;
Caso 3: Divórcio
Cenário
Ana e Bernardo, ambos com nacionalidade argentina, tinham domicílio em Itália, onde casaram um com o outro, em 2007, e aí continuaram a residir. Todavia, na sequência de uma zanga do casal, vivem em casas separadas desde outubro de 2010. Nesta data, Ana veio viver para Lisboa, onde passou a residir habitualmente, enquanto Bernardo permaneceu em Itália.
Em Lisboa, Ana conheceu César, português, com quem pretende casar e continuar a viver em Portugal. Como Bernardo não pretende divorciar-se de Ana, esta intentou uma ação de divórcio em tribunal português, em março de 2012, alegando que já está separada de facto de Bernardo há mais de 1 ano, facto que, considera, é fundamento para divórcio, nos termos do art. 1781°, al. a), CC português. Bernardo argumenta que a lei aplicável ao caso é a argentina, que exige a separação de facto há pelo menos 2 anos e, por isso, a ação deve ser julgada improcedente.
Admitindo que,
- a) Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes;
- b) O Direito Internacional Privado argentino regula o divórcio pela lei do último domicílio dos cônjuges;
- c) O Direito Internacional Privado italiano regula o divórcio pela lei da nacionalidade dos cônjuges;
- d) O Direito Internacional Privado italiano aceita o retorno para a sua própria lei;
- e) Os tribunais argentinos praticam a referência material;
- f) De acordo com o Direito material argentino é fundamento de divórcio a separação de facto há mais de dois anos consecutivos;
- g) O Direito italiano não prevê qualquer período mínimo de separação de facto que fundamente o divórcio, apenas se exigindo que seja intolerável a continuação da vida do casal;
diga, fundamentando devidamente a resposta e apreciando os argumentos invocados:
1) Se o divórcio deve ser decretado.
Análise (Ação antes de 21/06/2012)
Pretende-se saber se existe fundamento jurídico para que o divórcio possa ser decretado;
- não tendo a ação sido intentada depois de 21 de junho de 2012, o Regulamento (UE) n° 1259/2010, do Conselho de 20 de dezembro de 2010 que cria uma cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial, não é aplicável ao caso em razão dos critérios que delimitam o seu âmbito de aplicação temporal; referência aos arts. 18° e 21°;
- o art. 55° CC tem como conceito-quadro "separação judicial de pessoas e bens e divórcio"; interpretação do conceito-quadro;
art. 55°, n° 1, remete para o disposto no art. 52° CC; nos termos do art. 52°, n° 1, CC remete-se para lei nacional comum dos cônjuges, que no caso é a argentina; a norma de conflitos argentina remete para a lei do último domicílio dos cônjuges, no caso, a lei italiana; a norma de conflitos italiana remete para a lei da nacionalidade dos cônjuges, a lei argentina; esquematicamente: L1 (art. 55°, n° 1 e 52°, n° 1 CC) → L2 (lei argentina) → L3 (lei italiana) → L2 (lei argentina);
- os tribunais argentinos, ao praticarem a referência material, aplicam a lei designada pela sua norma de conflitos; logo, a lei argentina aplica a lei material italiana;
- o Direito Internacional Privado italiano, ao aceitar o retorno para a sua própria lei, considera competente a lei material italiana;
- estando perante uma situação de reenvio para uma terceira lei, importa verificar se estão preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 1, CC;
- os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 1, do CC, estão preenchidos, pois a lei portuguesa remete para uma lei estrangeira (a lei argentina), a lei argentina aplica uma terceira lei (a lei italiana) e esta considera-se competente para regular a situação; ou seja, no caso, L2 aplica L3 e L3 aplica L3;
- a verificação dos pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 2, CC, suscita, neste caso, dificuldades, pois, apesar de a lei argentina ser a lei pessoal dos cônjuges, apenas a Ana tem residência habitual em território português; já Bernardo tem residência habitual em Itália, cujas normas de conflitos não consideram competentes o Direito interno argentino;
se se seguir a orientação que sustenta que, neste caso, para estarem preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 2, CC, ambos os cônjuges tinham de residir habitualmente em Portugal, concluiu-se pela não aplicação desta disposição;
- seguindo-se essa orientação, os tribunais portugueses aplicam a lei italiana para regular o divórcio entre os cônjuges;
- interpretação e caracterização da norma material italiana que regula a questão;
as normas materiais italianas que regulam o divórcio são subsumíveis no conceito-quadro do art. 55° CC; aplicação do art. 15° CC;
- os pressupostos de aplicação do art. 19° CC não estão preenchidos; fundamentação;
- o divórcio poderá ser decretado se, conforme previsto na lei italiana, a continuação da vida do casal for intolerável.
Análise (Ação após 21/06/2012)
2) - Se a ação fosse intentada depois de 21 de junho de 2012, haveria que determinar se era aplicável o Regulamento (UE) n° 1259/2010 do Conselho de 20 de dezembro de 2010, que cria uma cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial;
- estão preenchidos os pressupostos de aplicação do citado Regulamento; fundamentação;
- interpretação dos conceitos de "divórcio" e de "separação judicial"; interpretação autónoma;
- as partes podiam acordar na designação de uma das leis indicadas no art. 5°, n° 1, als. b), c) ou d) do Regulamento; no caso, podiam designar a lei italiana, a lei argentina ou a lei portuguesa;
- não escolhendo as partes a lei aplicável, a situação seria regida, nos termos do art. 8°, al. c), do Regulamento, pela lei argentina;
- este Regulamento, nos termos do art. 11°, exclui o reenvio.
Caso 4: Sucessão por Morte e Indignidade
Cenário
Adrien, cidadão francês, habitualmente residente em Portugal, faleceu em Lisboa, deixando bens imóveis no Panamá.
Adrien era solteiro, não tinha filhos e não fez testamento. A Adrien sobreviveram os seus pais, Barbara, francesa, e Carlos, panamiano.
Na sequência da morte do filho, Carlos, que apenas tinha visto Adrien quando este acabara de nascer, vem habilitar-se como herdeiro, pretendendo ficar com os imóveis que se encontram no Panamá. Barbara contesta esta pretensão de Carlos, invocando a lei panamiana, nos termos da qual os progenitores que abandonem os filhos são incapazes de suceder por indignidade. Barbara recorda Carlos que este abandonou Adrien no dia em que o filho nasceu.
Admitindo que:
- a) Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes;
- b) O Direito Internacional Privado francês regula a sucessão imobiliária pela lex rei sitae;
- c) A norma de conflitos do Panamá que regula a sucessão por morte determina a aplicação da lei material panamiana nos casos em que os bens a herdar se encontrem no Panamá;
- d) Os arts. 726 e 727 do Código Civil francês não preveem como causa de indignidade o abandono dos filhos pelos progenitores;
diga, fundamentando devidamente a resposta e apreciando os argumentos invocados, se Carlos devia ser habilitado herdeiro de Adrien.
Análise
Pretende-se saber quem fica com os bens de Adrien depois da sua morte;
- o art. 62° CC tem como conceito-quadro "sucessão por morte"; interpretação do conceito-quadro;
- o art. 62° CC remete para a lei pessoal do de cujus; nos termos do art. 31°, n° 1, CC, a lei pessoal é lei da nacionalidade do indivíduo; Adrien era francês;
- a norma de conflitos portuguesa remete para a lei francesa; a norma de conflitos francesa remete para a lei do lugar onde se situam os imóveis, no caso, a lei panamiana; a norma de conflitos panamiana determina a aplicação da lei material panamiana quando os imóveis se encontram no Panamá; esquematicamente: L1 (art. 62°) → L2 (lei francesa) → L3 (lei panamiana) → L3 (lei panamiana);
- os tribunais franceses, ao remeterem para a lei panamiana, que se considera competente, aplicam a lei material panamiana; a lei panamiana aplica a sua própria lei material;
- os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 1, do CC, estão preenchidos, pois a lei portuguesa remete para uma lei estrangeira (a lei francesa), a lei francesa aplica uma terceira lei (a lei panamiana) e esta considera-se competente para regular a situação; ou seja, no caso, L2 aplica L3 e L3 aplica L3;
pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 2, CC, estão preenchidos, pois a lei francesa é a lei pessoal e o interessado (Adrien) residia habitualmente em Portugal;
- estão ainda preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 17°, n° 3, CC, pois trata-se de um caso de sucessão por morte, a lei nacional - que no caso é a lei francesa - aplica a lei da situação dos imóveis - que é a lei panamiana - e esta considera-se competente;
- interpretação e caracterização das normas materiais panamianas que regulam a capacidade para suceder; estas normas panamianas são subsumíveis no conceito-quadro do art. 62° CC; aplicação do art. 45° CC;
- o reenvio é, todavia, paralisado por força do art. 19°, n° 1, CC, pois os seus pressupostos de aplicação estão preenchidos: da aplicação do art. 17° CC - e consequente regulação desta situação pela lei material panamiana - resultava a incapacidade de Carlos para suceder; se se aplicasse o art. 16° CC e, consequentemente, a lei francesa, Carlos seria capaz para suceder; logo, da aplicação da lei panamiana resulta a ilegitimidade de um estado que não ocorreria se a lei aplicada fosse a francesa; cessa o reenvio e a situação é regulada pela lei francesa, por aplicação do art. 16° CC;
Caso 5: Sucessão Mobiliária e Indignidade
Cenário
Adamo, solteiro, com 60 anos, é cidadão francês e tem dois filhos, Ben e Carla, também franceses. Toda a família reside habitualmente em Lisboa desde há cerca de 30 anos, tendo os filhos já nascido em Portugal.
Em 2010, Carla dirigiu-se a uma esquadra da polícia e disse a um agente que o seu irmão, Ben, tinha assassinado a sua vizinha, Daniela.
Carla bem sabia que Daniela apenas estava a passar férias na Austrália, mas pretendia que contra o seu irmão fosse instaurado um procedimento judicial. Com efeito, Ben era um político conhecido e Carla pretendia que a honra do irmão ficasse manchada.
Uma vez reposta a verdade, Ben, indignado, depois de um rápido processo judicial, obtém uma sentença em que Carla é condenada por denúncia caluniosa.
Em 2011, Adamo morre e Ben, tendo intentado uma ação judicial em tribunais portugueses em que pede que a irmã seja declarada indigna, atento o disposto no art. 2034°, al. b), do CC português, afirma que Carla nada receberá da herança deixada pelo pai, composta por bens móveis situados em Portugal.
Admitindo que:
- a) Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes;
- b) As ordens jurídicas referidas no caso consideram que todos membros da família têm domicílio em Portugal;
- c) O Direito de Conflitos francês regula a sucessão mobiliária pela lei do último domicílio do de cujus;
- d) Os tribunais franceses, em questões sucessórias, praticam devolução simples;
- e) Nos arts. 726 e 727 do Código Civil francês não se prevê como causa de indignidade a condenação por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra os descendentes do autor da sucessão;
diga, fundamentando a resposta, se a pretensão de Ben deve ser julgada procedente pelo tribunal.
Análise
Pretende-se saber quem fica com os bens de Adamo depois da sua morte;
- o art. 62° CC tem como conceito-quadro "sucessão por morte"; interpretação do conceito-quadro;
- o art. 62° CC remete para a lei pessoal do de cujus; nos termos do art. 31°, n° 1, CC, a lei pessoal é lei da nacionalidade do indivíduo; Adamo era francês;
- a norma de conflitos portuguesa remete para a lei francesa; a norma de conflitos francesa remete para a lei do último domicílio do de cujus, no caso, a lei portuguesa; esquematicamente: L1 (art. 62°) → L2 (lei francesa) → L1 (lei portuguesa);
- os tribunais franceses, ao praticarem o sistema de devolução simples, consideram que a devolução que a lei designada pela sua norma de conflitos faz é uma referência material; logo, a lei francesa aplica a sua própria lei material, pois considera que a devolução feita pela lei portuguesa para a francesa é uma referência material;
- estando perante uma situação de reenvio para a lei portuguesa, importa verificar se estão preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 18°, n° 1, CC;
- os pressupostos de aplicação do art. 18°, n° 1, do CC, não estão preenchidos, pois os tribunais franceses não aplicam a lei material portuguesa, mas sim a sua própria lei material;
- não estando preenchida a previsão do art. 18°, n° 1, CC, aplica-se a regra geral, consagrada no art. 16° CC, de onde resulta que a lei portuguesa aplica a lei francesa;
Caso 6: Sucessão Imobiliária e Liberdade de Testar
Cenário
Alfred, cidadão britânico, viúvo, residente em Londres, faleceu em 2011, sobrevivendo-lhe dois filhos, também britânicos e residentes em Londres.
Alfred fizera testamento, em Londres, deixando todos os seus bens imóveis, que se situam em Portugal, a um dos filhos, Bobby.
A Charles, o outro filho, Alfred deixou apenas uma pequena quantia em dinheiro.
Charles vem agora dizer que é aplicável a lei portuguesa à sucessão por morte do pai e, por isso, considera-se herdeiro de uma parcela superior àquela que foi fixada no testamento.
Admitindo que:
- a) Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes;
- b) A lei inglesa regula a sucessão imobiliária pela lex rei situs;
- c) O Reino Unido é um ordenamento jurídico onde vigoram diferentes sistemas jurídicos válidos para as várias parcelas do território;
- d) Não existe, no Reino Unido, Direito interlocal nem regras de Direito Internacional Privado unificadas;
- e) De acordo com a lei material inglesa existe liberdade de testar;
diga, apreciando os argumentos invocados, se a pretensão de Charles deve ser julgada procedente pelo tribunal português.
Análise
Pretende-se saber quem fica com os bens de Alfred depois da sua morte;
- o art. 62° CC tem como conceito-quadro "sucessão por morte"; interpretação do conceito-quadro;
- o art. 62° CC remete para a lei pessoal do de cujus; nos termos do art. 31°, n° 1, CC, a lei pessoal é a lei da nacionalidade do indivíduo; Alfred era cidadão britânico;
- o Reino Unido é um ordenamento jurídico onde vigoram diferentes sistemas jurídicos válidos para as diferentes parcelas do território;
- a previsão do art. 20°, n° 1, CC, está preenchida, pois, em razão da nacionalidade de Alfred, é designada a lei do Reino Unido, onde coexistem diferentes sistemas legislativos locais;
- não existe, no Direito do Reino Unido, normas de Direito interlocal, nem regras de Direito Internacional Privado unificado (art. 20°, n° 2, CC);
- nos termos do art. 20°, n° 2, CC, nestes casos, considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual; Alfred tinha residência habitual em Inglaterra, logo, aplica-se a lei inglesa;
- os tribunais ingleses remetem para a lei do lugar da situação dos imóveis, no caso, a lei portuguesa; esquematicamente: L1 (lei portuguesa) → L2 (lei inglesa) → L1 (lei portuguesa);
os tribunais ingleses, ao praticarem o sistema de devolução dupla, aplicarão a mesma lei que os tribunais do Estado para cuja lei remetem aplicarem, ou seja, aplicarão a lei que os tribunais portugueses aplicarem;
- havendo retorno para o Direito português, há que verificar se estão preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 18°, n° 1, CC; discussão na doutrina acerca desta questão; segundo uma orientação doutrinária, é de aceitar o retorno para a lei portuguesa; a doutrina maioritária entende que não estão preenchidos os pressupostos de aplicação do art. 18°, n° 1, CC, pois os tribunais ingleses ao remeterem para o Direito português atendem às suas normas de conflitos e ao seu sistema de devolução, não determinando diretamente a aplicação do Direito material português;
- não estando preenchida a previsão do art. 18°, n° 1, CC, aplica-se o art. 16° CC e, em consequência, a lei inglesa é a designada para regular esta situação;