Fenomenologia de Husserl: Tempo e Consciência
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Husserl: Fenomenologia da Consciência e do Tempo
Husserl concebeu uma filosofia do tempo centrada na descrição da forma como o experimentamos, como ele aparece à nossa consciência, num duplo movimento de retenção do passado e de tensão em direção ao futuro. As Lições para uma fenomenologia da consciência íntima do tempo enquadram-se no programa geral da filosofia husserliana. Desde as Investigações Lógicas, mas sobretudo a partir das Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica, Husserl concebeu a ideia de uma disciplina, a fenomenologia, que teria como objetivo a criação de uma filosofia verdadeiramente científica – uma ciência de rigor que deveria substituir a antiga metafísica. A fenomenologia teria por missão fundar todas as ciências, descrevendo os processos através dos quais a consciência constitui toda a espécie de objetos.
Para que essa descrição possa vir a ter lugar, é necessário colocar entre parênteses todo o mundo que a nossa consciência, ingénua, dá como adquirido – Husserl retoma o termo epokhe: suspensão de juízo – e analisarmos apenas as operações imanentes à nossa consciência, sem considerarmos o seu aspecto transcendente, isto é, a posição efetiva de objetos que ela faz. Essa posição transcendente de objetos fora de nós é característica da “atitude moral”. Como escreve Husserl nas Ideias: “Todas as questões positivas situam-se no quadro da realidade do mundo, pré-dada como clara em si mesma na experiência viva e no quadro de outras evidências naturais que se edificam sobre ela”. As “questões positivas” são exatamente aquelas que pertencem às “ciências oriundas da atitude natural”, cujo objetivo é “ter deste mundo um conhecimento mais vasto, mais digno de confiança, mais perfeito, sob todos os aspectos, que aquele que permite a informação ingénua da experiência e resolver todas as tarefas do conhecimento científico que se põem no seu terreno”. O acento deve ser colocado aqui na promessa de alargamento dos conhecimentos que é própria à atitude natural, e que ecoa o princípio da variedade do apêndice à “Dialética Transcendental” da “Crítica da Razão Pura” de Kant. Esse alargamento resulta do facto de a atitude natural ser uma tese ou uma posição, como indica o título do primeiro capítulo da segunda secção das “Ideias”. “Tese” e “posição” significam exatamente a afirmação de uma existência exterior, transcendente, como diz Husserl, ao sujeito. Mas este conhecimento “mais vasto” que procede por múltiplas posições faz-se a partir do fundo de um horizonte de indeterminabilidade, de um não fundamento, que acompanha qualquer posição de um objeto: “O que é atualmente apercebido e mais ou menos co-presente e claramente determinado é em parte atravessado, em parte rodeado, por um horizonte obscuramente consciente de realidade indeterminada. Essa realidade indeterminada estende-se ao infinito. Este horizonte, eternamente incapaz de uma total determinação, encontra-se necessariamente aí”.
A epokhe universal, a redução fenomenológica, o pôr entre parênteses o mundo tal como ele aparece à “atitude natural” deveria dar lugar, segundo o autor, a uma descrição do cogito da qual qualquer posição de existência seria fundamentalmente excluída. O “espectador desinteressado”, o “espectador imparcial de si mesmo” que aspira descrever com uma “imparcialidade absoluta” a “esfera egológica absoluta intocada pela redução” é o fenomenólogo em ato. A redução fenomenológica é acompanhada por uma redução eidética. Esta última é o processo através do qual
Relação com a Filosofia Analítica
Relação com a Fenomenologia
nós determinamos o que é absolutamente necessário à essência (eidos) dos nossos objetos mentais. O tema da “visão das essências”, das “intuições eidéticas” é um tema central em Husserl. Capturamos as essências “em pessoa” quer dizer, na sua presença máxima, na sua ipseidade “corporal”.
A redução fenomenológica é vista por Husserl como necessária a uma verdadeira filosofia transcendental. Com efeito, Husserl declara ser a fenomenologia uma filosofia transcendental, em parte no sentido Kantiano, em parte num sentido que inclui a própria filosofia de Descartes (dúvida absoluta quanto à qualquer existência exterior ao Eu). Note-se que a filosofia chamada empirista, à medida em que procede a uma análise dos processos mentais, serviu igualmente de inspiração a Husserl. A fenomenologia do autor sofreu várias transformações que afastaram alguns dos discípulos iniciais desde a publicação das Investigações Lógicas. As Ideias representam indiscutivelmente uma delas, elaborando um idealismo que não se encontrava nas Investigações.
Em primeiro lugar, a fenomenologia husserliana é uma reflexão ininterrupta sobre a natureza da evidência. Esta é vista, já nas Investigações, como uma visão, uma intuição, que é uma “vivência da verdade”. Husserl é indubitavelmente o grande pensador da evidência da primeira metade do século XX. Em segundo lugar, a fenomenologia é habitada pela exigência da constituição de uma “ontologia formal”, válida para todas as formas de pensamento, que deve ser acompanhada por “ontologias regionais”, próprias a cada ciência e a cada esfera particular de objetos do pensamento, das ciências da natureza às da sociedade. A repercussão da obra de Husserl foi enorme e influenciou vários autores.
Husserl aproveitou a noção de Brentano acerca da intencionalidade, ou por outras palavras, a ideia de que o que caracteriza os fenómenos mentais e os distingue dos físicos é o facto de serem dirigidos a objetos. Para que haja um pensamento têm de existir dois elementos essenciais: um conteúdo e um possuidor. Husserl analisaria estas duas características dizendo que se tratava de um ato praticado por mim sobre uma matéria específica. Distinguiu psicologismo de lógica, e psicologia de epistemologia. Fê-lo, reinventando a psicologia como a nova disciplina da fenomenologia. O objetivo da epistemologia era o estudo dos dados imediatos da consciência, sem referência a algo que a consciência pudesse dizer, sobre o mundo extra-mental.
A fenomenologia deve fazer um estudo aprofundado dos fenómenos psicológicos e pôr entre parênteses o mundo dos objetos extra-mentais. Quanto à existência desse mundo, a atitude do fenomenologista deve ser a de suspensão de juízo – epokhe. Estabelece uma distinção entre perceção imanente (evidente em si mesma) e perceção transcendente (falível). A perceção é o meu contacto imediato com os meus próprios atos e estados mentais atuais. A transcendente é a minha perceção dos atos passados, de coisas e acontecimentos físicos, de conteúdos da mente de outras pessoas. Só a consciência tem “ser absoluto”; todas as outras formas de ser dependem da consciência para existirem. A fenomenologia é, assim, a mais essencial de todas as disciplinas pois os itens que constituem a sua matéria de estudo fornecem os dados para todos os outros ramos da filosofia e da ciência. Husserl foi o último grande filósofo da tradição cartesiana. Ainda assim, Husserl, bem como Descartes consideravam a epistemologia como disciplina-base. Husserl nunca duvidou de duas coisas: a certeza dos seus próprios estados e processos mentais e da linguagem que utilizara para os relatar. Ambos acreditavam que essas certezas podiam sobreviver a qualquer dúvida acerca do mundo exterior. Husserl argumentava que a nossa consciência dos objetos exteriores consistia nos nossos vislumbres parciais desses mesmos objetos e nos nossos contactos com eles. Mas se esses vislumbres não mostrassem a ordem que mostram, ser-nos-ia
impossível construir objetos a partir deles. Com isto, é perfeitamente concebível que essa ordem possa ser estilhaçada, deixando-nos apenas uma série caótica de sensações. Se tal acontecesse, deixaríamos de percecionar objetos físicos e o nosso mundo seria destruído. Porém, argumenta Husserl, a consciência sobreviveria a tal destruição do mundo.
Se a minha consciência é indubitavelmente certa, enquanto o mundo da matéria é essencialmente dúbio, afigura-se de maneira judiciosa suspender o juízo. Todavia, a epokhe não é um ponto de partida neutro entre o realismo e o idealismo. O pressuposto de que a consciência pode ter expressão no mundo puramente privado assenta numa petição de princípio contra o realismo. Em virtude de separarem o conteúdo da consciência de qualquer ligação não-contingente com a expressão desse conteúdo na linguagem e com os objetos do mundo exterior que lhes correspondem. Husserl acaba, tal como Descartes enclausurado no solipsismo. Husserl tenta libertar-se postulando uma consciência transcendental.
A linha de raciocínio que levou Husserl a tornar-se um idealista transcendental foi a que se segue: o ponto de partida foi o natural, o de que a consciência faz parte do mundo, com causas físicas, contudo, para evitar ter que postular, como Kant, um coisa em si inatingível através da experiencia, somos forçados a afirmar que o mundo físico é, ele mesmo, uma criação da consciência. Mas se a consciência que o cria é a nossa consciência psicológica comum, então, deparamo-nos com um paradoxo: o mundo como um todo é constituído por um dos seus elementos, a consciência humana. A única forma de o evitar é afirmar que a consciência que constitui o mundo não faz parte do mundo, sendo transcendental.
Todavia, o mundo que a consciência cria é moldado não só pelas experiências mas também pela cultura e pelos pressupostos fundamentais em que vivemos: aquilo a que Husserl chama “o mundo da vida” – esse mundo da vida não é um conjunto de juízos baseados em provas, é antes um substrato acrítico que subjaz a todas as provas e juízos. Não se trata de algo final e imutável, o nosso mundo da vida é afetado por desenvolvimentos na ciência, uma vez que a ciência está enraizada no nosso mundo da vida. As hipóteses ganham significado através da ligação que têm como o mundo da vida e, por sua vez, vão, gradualmente, mudando o mundo.