Filosofia do Direito: Conceitos e Desafios Atuais
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Distinga as Vertentes do “Real-Verdadeiro” e do “Real-Construído”
A distinção entre o "real-verdadeiro" e o "real-construído" assenta numa compreensão ontológica relacionada com o estudo do ser, particularmente no campo da ontologia regional de matriz ético-social, onde o Direito é visto como parte integrante do real normativo. Este real normativo, no contexto do Direito, é aquele que procura operar praxiologicamente (de maneira eficaz para a ação) sobre os seus destinatários, moldando as relações sociais e as ações humanas.
Real-Verdadeiro: O Horizonte do Ser Causal
O "real-verdadeiro" refere-se ao domínio do ser causal, que abrange o mundo dos entia physica, ou seja, tudo o que pertence ao domínio da natureza e dos fenómenos empíricos. Inclui tanto a natura naturans (o processo de geração ou a criação da natureza) quanto a natura naturata (a natureza tal como ela é dada, o mundo físico já existente). Este tipo de real caracteriza-se pela sua objetividade e pela sua independência da ação humana: trata-se de um mundo em que as ocorrências e os objetos naturais acontecem sem a intervenção direta da vontade ou da escolha humana, não havendo, por isso, espaço para imputação de responsabilidade intencional, já que o sujeito não é responsável pela constituição deste mundo.
Exemplo do "real-verdadeiro": A queda de uma pedra, ou o movimento de um planeta no espaço. Estes são fenómenos que pertencem ao mundo empírico e natural, onde não há ação ou intenção humana que os determine. O Direito, por sua natureza, não pode imputar responsabilidade por tais fenómenos, pois são acontecimentos causais independentes da vontade humana.
Real-Construído: O Domínio do Ser Cultural
O "real-construído", por outro lado, refere-se ao domínio do ser cultural, dos entia moralia, ou seja, tudo o que é criado pelo ser humano a partir da sua razão prática, da sua vontade e dos seus valores. Este é o mundo das ações humanas, das construções sociais, das relações interpessoais e da criação de normas e estruturas que organizam a sociedade. O real-construído envolve o agir humano livre, sendo, portanto, suscetível de imputação e responsabilização, uma vez que é fruto de escolhas e ações intencionais.
Exemplo do "real-construído": O Direito, como disciplina da razão prática, é um exemplo claro do real-construído, pois é uma construção humana que responde à pergunta "o que devo fazer?", regulando as ações humanas de acordo com valores éticos, sociais e jurídicos. Por exemplo, o contrato celebrado entre duas partes para a venda de um bem é um ato do real-construído, pois resulta da vontade livre das partes envolvidas, e o cumprimento do contrato pode ser cobrado judicialmente, com imputação de responsabilidades, caso haja incumprimento.
Conexão entre "Real-Verdadeiro" e "Real-Construído" no Direito
Apesar da distinção entre estes dois tipos de real, no campo do Direito, eles frequentemente se conectam, uma vez que o real-construído, particularmente no que diz respeito ao Direito, muitas vezes articula-se com o real-verdadeiro, especialmente quando se depara com os factos naturais e empíricos que são tomados como pressupostos para a aplicação das normas jurídicas.
Exemplo de Conexão: Um exemplo típico dessa interação ocorre na responsabilidade civil por danos. O real-construído, neste caso, é o próprio ordenamento jurídico que define as normas de conduta e as responsabilidades, como no caso de um acidente de trânsito. No entanto, para que se determine a extensão da responsabilidade, é necessário recorrer ao real-verdadeiro, como a perícia médica, que verifica a extensão dos danos físicos causados, ou ainda, os danos materiais.
Conclusão
A conexão entre o "real-verdadeiro" e o "real-construído" no Direito é fundamental, pois o Direito, como uma construção humana, depende dos factos naturais para estabelecer uma base de imputação de responsabilidades. Embora o real-verdadeiro seja independente da ação humana, ele serve como o campo de atuação onde as normas jurídicas, oriundas do real-construído, são aplicadas, ajustando-se à realidade empírica e social para que se alcance uma justiça eficaz.
O Direito como Dever-Ser e a Questão da Legitimidade
O Direito insere-se na categoria do "real-construído", ou seja, um produto das relações humanas, das dinâmicas sociais e históricas, que depende da adesão coletiva. Esse caráter construído coloca a questão da obediência ao Direito em um plano ético e normativo, onde a legitimidade material se torna central. Para além de ser uma ordem vigente (real-verdadeiro), o Direito carrega a pretensão de ser justo e correto, devendo se fundamentar em valores éticos que orientam a sociedade. Essa distinção conduz à necessidade de um juízo ético sobre o ordenamento jurídico, questionando se ele é justo ou correto. A legitimidade do Direito, assim, não pode repousar apenas na sua vigência enquanto norma positiva, mas deve também se justificar perante a ideia de Justiça, que transcende o Direito legislado e positivo.
Direito como Ordem de Validade
Enquanto ordem de validade, o Direito não se esgota em sua dimensão formal. Ele carrega uma pretensão de correção ou justeza que o diferencia de um simples conjunto de normas impostas. Essa pretensão aponta para "uma certa ideia de Direito" que, embora se manifeste no Direito positivo, não se confunde com ele. Tal ideia vincula-se a valores fundamentais, como a dignidade humana, a igualdade e a responsabilidade coletiva.
Distinção entre Lei e Direito
- Lei: Normatividade elaborada por instâncias legitimadas democraticamente, mas passível de erro ou injustiça.
- Direito: Ordem que aspira à realização de uma carga axiológica, essencialmente orientada pela Justiça.
A fórmula de Gustav Radbruch, ao declarar que "a lei extremamente injusta não é lei" (lex iniusta non est lex), marca um ponto de ruptura entre o formalismo jurídico e a exigência de justiça. Em situações de injustiça extrema, o dever de obedecer à lei cede espaço ao direito de resistência, que surge como uma obrigação moral e jurídica de contestar ordens que violem gravemente os valores fundamentais da dignidade humana.
Essa perspectiva evidencia a conexão indissociável entre Direito e moralidade em sentido amplo. A norma jurídica só se justifica enquanto instrumento que promove uma pretensão de retidão, sustentada por um esforço coletivo e igualitário.
Responsabilidade e Participação no Real-Social
No contexto do real-social, o Direito nos impõe a responsabilidade de traçar limites normativos que sejam legítimos e adequados à dignidade de todos os envolvidos. Essa responsabilidade exige participação ativa de todos os cidadãos, em um compromisso ético que transcende interesses individuais, implicando despojamento e entrega em prol do bem comum.
O Direito, portanto, não é meramente coercitivo, mas uma construção que deve integrar valores como igualdade e responsabilidade, alicerçados pela dignidade da pessoa humana.
Conclusão
A legitimidade prática de uma norma jurídica depende de sua capacidade de se justificar como instrumento de realização da Justiça. A pretensão de validade ou correção de um comando jurídico deve se vincular a valores éticos, como a igualdade e a dignidade humana, que estruturam uma sociedade justa e responsável. Assim, a obediência ao Direito só pode ser plenamente legitimada quando este se compromete, na teoria e na prática, com a realização desses valores fundamentais.
Ubiquidade do Direito vs. Espaço Livre de Direito
A tese da ubiquidade do Direito sustenta que a normatividade jurídica está presente em todos os aspectos da vida social. Este pensamento parte de uma lógica binária: o que não está proibido pelo Direito está permitido por ele. Essa visão reflete o "horror vacui" em relação ao vazio normativo, especialmente no contexto da sociedade de risco e do tempo breve, onde a expansão contínua do ordenamento jurídico busca regular todos os âmbitos da vida em resposta a novos desafios e incertezas.
Porém, esta progressiva expansão normativa pode levar a um fenômeno de overregulation, no qual o Direito passa a ocupar espaços que deveriam ser reservados à autonomia individual ou às normas sociais e éticas, gerando tensões entre a liberdade pessoal e o controle jurídico.
Axioma do Espaço Livre de Direito
Por outro lado, o axioma do espaço livre de Direito parte de um pressuposto diferente: reconhece a necessidade de espaços imunes à regulamentação jurídica, onde a autonomia individual possa florescer sem interferências. Este axioma baseia-se:
- Na fragmentariedade do ser humano, que implica que a vida em comunidade não pode ser completamente absorvida pelo todo normativo.
- Na ideia de subsidiariedade, segundo a qual o Direito deve intervir apenas quando absolutamente necessário, respeitando as esferas de autonomia pessoal.
- Na conexão com o mínimo ético, rejeitando um modelo de máximo ético que impusesse uma uniformização normativa em todos os aspectos da vida.
Este entendimento encontra fundamento na cultura dos direitos fundamentais, que protegem esferas de liberdade e dignidade individual contra a dissolução no coletivo. Assim, o axioma do espaço livre de Direito reflete uma visão deontológica, defendendo a existência de limites intransponíveis para a regulamentação jurídica.
Razões para a Preferência do Espaço Livre de Direito
- Respeito à autonomia: Garante o livre exercício da autonomia individual, fundamental para a dignidade humana.
- Equilíbrio entre liberdade e controle: Privilegia um modelo de mínimo ético, respeitando a igualdade dos seres humanos enquanto agentes responsáveis.
- Limites necessários ao Direito: Oferece um “definitional stop” essencial, impedindo que o Direito ultrapasse os limites éticos.
O axioma do espaço livre de Direito representa um modelo normativo mais equilibrado e humano, capaz de preservar a autonomia e a dignidade individual em uma sociedade cada vez mais regulada. Ele propõe que o Direito intervenha apenas quando indispensável, respeitando a fragmentação ontológica e normativa que caracteriza a vida humana. Em contraste, a tese da ubiquidade do Direito corre o risco de sufocar a liberdade e reduzir a pluralidade da vida social à uniformidade normativa. Portanto, o espaço livre de Direito deve ser preferido como expressão de um Direito que respeita, antes de tudo, a condição humana.
Desafios da Tardo-Modernidade para o Direito
O termo "tardo-modernidade" destaca a continuidade dos ideais modernos, como a emancipação e o progresso, mas em um cenário transformado pela globalização, pela evolução tecnológica e por novas dinâmicas sociais. Diferentemente de "pós-modernidade", que sugere um rompimento, "tardo-modernidade" aponta para uma fase avançada e complexa do projeto moderno, em que velhos paradigmas são revisados sem serem completamente abandonados.
Sociedade de Risco
A tardo-modernidade é marcada pela "sociedade de risco", conceito desenvolvido por Ulrich Beck, que identifica uma época caracterizada por incertezas globais decorrentes de avanços tecnológicos, crises ambientais, pandemias, terrorismo e outras ameaças que transcendem fronteiras. Esses riscos tornam-se palpáveis em suas implicações práticas.
Sociedade da Informação e Comunicação
O paradigma da sociedade de risco está intimamente ligado à sociedade da informação. A comunicação global intensifica a percepção dos riscos, enquanto a rapidez das informações desafia a capacidade de análise crítica e a tomada de decisões ponderadas. Isso leva ao fenômeno da "razão débil", onde o curto prazo domina as decisões e dificulta a criação de estratégias sustentáveis.
Desafios Éticos e Jurídicos
A tardo-modernidade também é uma época de erosão de parâmetros éticos e normativos claros. A glorificação do instante e a sinuosidade das demandas sociais colocam o Direito sob intensa pressão para adaptar-se a realidades fluidas e urgentes. A tardo-modernidade exige do Direito uma capacidade renovada de adaptação e fundamentação ética, especialmente em um mundo globalizado e interconectado. O desafio está em manter uma "linha reta" de princípios fundamentais em um cenário de crescente complexidade e sinuosidade. Mais do que nunca, o Direito precisa ser uma ferramenta de emancipação e justiça, capaz de enfrentar os riscos e incertezas da nossa época, orientado pelos valores da dignidade humana, igualdade e responsabilidade coletiva.
A Dimensão Temporal da Normatividade Jurídica
A dimensão temporal da normatividade jurídica é um tema central na Filosofia do Direito, pois reflete como o Direito lida com a temporalidade enquanto característica intrínseca à existência humana e à organização social. A análise dessa relação abrange desde a natureza histórica e contingente do Direito até questões práticas como prazos, vigência e impacto em gerações futuras.
Tempo e Finitude Humana
O tempo é essencial para a Filosofia do Direito, não apenas como um dado formal ou categoria abstrata, mas como uma manifestação da nossa condição de seres finitos. A consciência da finitude — enquanto limite absoluto do nosso ser-com-os-outros — implica que o tempo se torna condição de liberdade e, consequentemente, de normatividade jurídica. Essa visão destaca a temporalidade como algo vivido e historicamente situado, em oposição à mera sucessão objetiva de eventos. Nesta perspectiva, a obediência ao Direito não é atemporal ou descontextualizada; está vinculada à historicidade da experiência humana e à forma como o tempo molda os valores e as normas.
Distinção entre Juridicidade do Tempo e Temporalidade do Direito
- Juridicidade do tempo: Envolve aspectos formais e regulatórios, como a definição de fusos horários, a vigência de leis em diferentes períodos (vacatio legis), e outros elementos técnicos.
- Temporalidade do Direito: Vai além desses aspectos formais, abrangendo o modo como o Direito é influenciado pelo passado, presente e futuro, e como responde às necessidades e expectativas temporais da sociedade.
A dimensão temporal do Direito é multifacetada, abrangendo desde sua historicidade intrínseca até seus efeitos prospectivos e retrospetivos. Esta temporalidade exige que o Direito se adapte constantemente às transformações sociais e tecnológicas, enquanto preserva valores essenciais como igualdade e dignidade humana. Assim, o Direito não é apenas um instrumento de regulação estática, mas uma disciplina profundamente imbricada com o tempo e a vida humana, equilibrando as demandas do presente com as lições do passado e os desafios do futuro.
A Ars Inveniendi no Ensino da Filosofia do Direito
Concordo com a afirmação de que o ensino da Filosofia do Direito pressupõe reconhecer uma especialmente intensa dimensão de ars inveniendi. Essa perspectiva evidencia o caráter criativo e reflexivo da Filosofia do Direito, alinhando-se a uma tradição que remonta à metodologia jurídica medieval e se projeta na reabilitação contemporânea da razão prática.
Enquadramento Histórico: A Ars Inveniendi na Metodologia Jurídica Medieval
Historicamente, a ars inveniendi foi central na metodologia jurídica medieval, funcionando como instrumento para estruturar a análise jurídica com base em procedimentos dialéticos e retóricos. Essa abordagem focalizava a análise discursiva dos melhores argumentos – leges (normas), rationes (razões) e auctoritates (autoridades) – dentro de uma lógica de dar e pedir razões. Esse modelo não apenas influenciava a prática jurídica, mas também a formação do pensamento jurídico, promovendo a busca de soluções fundamentadas e justificáveis.
A Dimensão Poiética do Pensar e a Reabilitação da Razão Prática
O pensamento jurídico, no seu ato mais profundo, é essencialmente poiético – não apenas no sentido de produção, mas como criação reflexiva. Essa dimensão é crucial para o ensino da Filosofia do Direito, pois reabilita a razão prática como um elemento que integra abordagem prudencial e criatividade no campo do jus. Dessa forma, a ars inveniendi promove a articulação dinâmica entre sistema e problema, permitindo compreender a juridicidade como um fenômeno complexo e historicamente situado.
Jurisprudência como Prática Reflexiva
Essa abordagem prática da Filosofia do Direito remete à noção clássica de "jurisprudência" como ciência do justo e do injusto (scientia iuris), e não à acepção contemporânea mais restrita, que se limita ao conjunto das decisões judiciais. Recuperar essa dimensão reflexiva da jurisprudência é essencial para promover uma formação jurídica que vá além da mera reprodução de respostas normativas, engajando-se na construção de soluções éticas e juridicamente fundamentadas.
Pensamento Reflexivo e Dinâmico
Concordar com a afirmação implica reconhecer que a ars inveniendi representa o "pensamento pensante", ou seja, um modo de reflexividade dinâmica que transcende o pensamento linear e sequencial. Ela convida à criação e descoberta no âmbito jurídico, promovendo um pensamento crítico e aberto à complexidade das questões éticas e normativas contemporâneas.
Conclusão
O ensino da Filosofia do Direito, ao valorizar a ars inveniendi, reforça a necessidade de uma formação jurídica que integre criatividade, prudência e reflexão crítica. Essa abordagem não apenas resgata a tradição dialética e retórica do pensamento jurídico medieval, mas também promove uma compreensão mais profunda da juridicidade, essencial para enfrentar os desafios do Direito na contemporaneidade.