Fisiopatologia da Dor: Nociceptiva, Neuropática e Cronificação
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1. Fisiopatologia da Dor: Transdução e Cascata dos Eicosanoides
A dor nociceptiva é um processo subjetivo, fisiológico e inflamatório que, apesar de muito se ter descoberto, ainda é estudado até os dias atuais. Dentre os processos que fazem parte da fisiopatologia da dor, temos os seguintes: transdução, transmissão, modulação e percepção. Sendo assim, explique como e onde ocorre o processo de transdução, qual via carreia os potenciais de ação gerados, aprofundando-se principalmente na cascata dos eicosanoides envolvida no processo.
RESPOSTA: O processo de transdução ocorre no local da lesão e é caracterizado como a transformação da mediação química, mecânica ou térmica em potenciais de ação que se dirigem ao sistema nervoso central, mais precisamente ao corno posterior da medula espinhal, via anterolateral (sendo o primeiro neurônio uma fibra A-delta ou fibra C).
A mediação química que ocorrerá na periferia se envolve diretamente com a cascata dos eicosanoides, que tem início com os fosfolipídios de membrana lesados. Estes sofrem a ação da enzima fosfolipase A2, que os transforma em ácido araquidônico. O ácido araquidônico sofre a ação de enzimas chamadas COX (Ciclo-oxigenases) e LOX (Lipo-oxigenases). As COX-1 são constitutivas, ou seja, já estão presentes nos tecidos onde atuarão (ex: no trato gastrointestinal com ação citoprotetora, e no endotélio para agregação plaquetária), dando origem a prostaglandinas fisiológicas. Já as COX-2 são, em sua maior parte, induzidas (exceto no rim, onde é constitutiva), dando origem a prostaglandinas inflamatórias como a PGE2.
A PGE2 é a prostaglandina que aproxima o limiar de excitabilidade do potencial de repouso da membrana, o que desencadeia o processo de hiperalgesia primária e o consequente início dos potenciais de ação dos primeiros neurônios da dor.
2. Hiperalgesia Primária e Secundária: Diferenciação
A sensação dolorosa é caracterizada em duas fases, os processos denominados hiperalgesia primária e secundária. Diferencie os processos.
RESPOSTA: A hiperalgesia primária é caracterizada pela presença da PGE2 na periferia, sendo a dor localizada. A hiperalgesia secundária já remete ao processo de transmissão da dor, onde há a amplificação dos sinais (potenciais de ação), fenômeno conhecido como wind-up. Com isso, ocorre a somação dos potenciais de ação, podendo acarretar em uma maior área de sensação dolorosa, dificultando a localização específica da dor.
6. Medicamentos que Imitam a Ação da Encefalina
Um medicamento imita a ação da encefalina no organismo. Explique essa afirmação.
RESPOSTA: O mecanismo de ação da encefalina no organismo é, ao ser liberada pelo neurônio encefalinérgico (estimulado pela PAG ou fibra A-beta), ligar-se aos receptores μ (mu) do primeiro e do segundo neurônio.
Os receptores μ são receptores acoplados à proteína Gi que, no primeiro neurônio, fecham o canal de cálcio voltagem-dependente, diminuindo a exocitose de glutamato. No segundo neurônio, abrem canais de potássio, hiperpolarizando a membrana e impedindo que o potencial de ação prossiga, "fechando o portão da dor".
3. Transmissão da Dor: Vias, Neurotransmissores e Receptores
Como citado na questão número 1, a dor tem 4 processos bem definidos. Sendo assim, explique como ocorre a transmissão da dor, citando principais vias (1° e 2° neurônios), possíveis neurotransmissores envolvidos e receptores envolvidos, detalhadamente.
RESPOSTA: A transmissão da dor inicia-se quando o potencial de ação, vindo da periferia, chega ao 2° neurônio para fazer a sinapse. O potencial de ação é carregado pelo 1° neurônio, que pode ser uma fibra do tipo A-delta (dor rápida) ou tipo C (dor lenta).
Ao chegar o potencial de ação, ocorre a abertura dos canais de cálcio voltagem-dependentes, ativando as proteínas V e T-SNARE para a posterior exocitose do glutamato. O glutamato é o principal neurotransmissor da dor e, quando liberado, liga-se aos receptores AMPA e Cainato, e NMDA do 2° neurônio. Estes neurônios formam tratos chamados: trato neoespinotalâmico (90% cortical, 10% subcortical), paleoespinotalâmico (10% cortical, 90% subcortical) e espinoreticular (subcortical). O trato neoespinotalâmico faz sinapse apenas com fibras do tipo A-delta, enquanto os dois últimos fazem sinapse com fibras do tipo C.
Ao se ligar aos receptores AMPA e Cainato, ocorre a abertura do canal ionotrópico, que é mais seletivo ao íon sódio (mas pode permitir a entrada de cálcio). A abertura do canal NMDA é mais seletiva para o íon cálcio (mas pode permitir a entrada de sódio). Uma particularidade do NMDA é a presença de um íon Mg2+ no poro do canal, impedindo inicialmente a entrada de cálcio. Com o excesso de despolarizações do AMPA, o Mg2+ sairá do poro do canal (sendo “expulso”), e ocorre o influxo de cálcio no NMDA. Ao ocorrer o influxo de cálcio, inicia-se o potencial de ação no 2° neurônio (que são os tratos). Outra forma de remover o Mg2+ do poro do canal é com a presença da Substância P que, ao se ligar ao receptor NK1, facilita a saída do Mg2+.
4. Cronificação da Dor: Processo e Dificuldade de Tratamento
Explique o processo de cronificação da dor e o porquê da dificuldade de tratar este processo.
RESPOSTA: O processo de cronificação da dor é um processo de neuroplasticidade que pode ocorrer se a dor nociceptiva não for tratada adequadamente em 3 a 6 meses. Sem o tratamento adequado da dor, o 1° neurônio começa a liberar a Substância P, que se liga aos receptores NK1, remove o Mg2+ do poro do canal NMDA e inicia o processo de cronificação.
Ao se manter ativo, a entrada excessiva de cálcio induz a expressão de uma enzima chamada NOS (óxido nítrico sintase), que produz óxido nítrico. No segundo neurônio, o óxido nítrico atua aumentando a expressão de canais seletivos para o glutamato (AMPA e Cainato, e NMDA). No primeiro neurônio, ele mantém por mais tempo abertos os canais de cálcio voltagem-dependentes, aumentando assim a liberação de glutamato na fenda sináptica.
Com mais receptores NMDA e AMPA e mais glutamato para se ligar a eles, o processo se soma cada vez mais, aumentando os estímulos e potenciais de ação, possibilitando uma percepção extremamente dolorosa, álgica e de uma área sensibilizada muito maior do que o processo da dor nociceptiva inicial. É importante salientar que o óxido nítrico se retroalimenta, causando assim um processo que é difícil de ser tratado.
5. Modulação da Dor: Teoria do Gate Control de Melzack e Wall
No processo de modulação, a teoria de “Gate Control” de Melzack e Wall ganhou notoriedade no mundo em 1965. Explique em que consiste a teoria e as principais vias envolvidas.
RESPOSTA: Temos vias ascendentes e vias descendentes que explicam a modulação da dor.
Em relação às vias ascendentes, temos as vias que vêm da periferia mediadas pelas fibras do tipo A-beta (mecanorreceptoras), que têm a capacidade de estimular o interneurônio encefalinérgico (que é o "portão da dor" propriamente dito), se o estímulo da dor não for muito álgico.
As vias descendentes incluem a PAG (Substância Cinzenta Periaquedutal) e a PVG (Substância Cinzenta Periventricular). A PAG é uma via controlada pelo sistema límbico que, quando o indivíduo está em um estado mais relaxado, menos ansioso ou menos estressado, consegue estimular o neurônio encefalinérgico (que é um interneurônio) a diminuir ou cessar a transmissão da dor por meio do "portão da dor". A PVG, localizada acima da PAG, também está ligada ao sistema límbico, mas faz o efeito inverso: quando o indivíduo está extremamente estressado, ansioso, com alta produção de catecolaminas e cortisol, a PVG tem a capacidade de inibir a PAG, inibindo assim o interneurônio inibitório encefalinérgico e, consequentemente, impedindo a aplicação do "Gate Control".
7. Fator de Crescimento Neural: Benefícios e Malefícios na Dor Neuropática
A dor neuropática é um processo extremamente rápido, onde ocorrem mudanças na homeostase do organismo do indivíduo acometido, podendo acarretar em processos de neuroplasticidade. Tais processos são mediados por uma substância que, a depender, pode ser benéfica ou maléfica ao indivíduo. Sendo assim, cite o nome da substância e exemplifique um cenário que seria bom para o paciente e um cenário que seria ruim ao paciente.
RESPOSTA: A substância é o Fator de Crescimento Neural.
Um cenário benéfico ao paciente seria, por exemplo, em um Acidente Vascular Encefálico Isquêmico (AVEi) que atingisse parte da área motora do paciente e o impedisse de mover o braço direito. Sabe-se que, a depender do prognóstico, o paciente poderia ou não voltar a mover o braço direito, justamente por conta do fator de crescimento neural. Ao ocorrer um AVEi na área, há isquemia e hipóxia e, consequentemente, lesão neural. O fator de crescimento neural seria expresso; a célula neuronal que infartou não voltaria, mas o fator de crescimento neural, fisiologicamente, busca novas sinapses e promove o aumento do campo receptivo. Assim, o paciente poderia voltar a mexer o braço (talvez não da mesma maneira que movia anteriormente, mas ainda assim com alguma recuperação, obviamente com um trabalho multidisciplinar de fisioterapia e musculação, que não acontecerá da noite para o dia).
Em relação a um exemplo de cenário ruim ao paciente, temos o desenvolvimento da dor neuropática. Um paciente com membro amputado, por exemplo, pode ter a cicatrização dos segmentos neurais da região amputada formando um neuroma (como se fosse um botão). Toda vez que esse "botão" é ativado, ele despolariza todas as fibras adjacentes, o que pode acarretar em sintomas bem específicos da dor neuropática, como alodinia, hiperalgesia severa e parestesia.
8. Alterações na Homeostase Causadas pelo Fator de Crescimento Neural
A substância que você identificou na questão 7 pode acarretar em diferenciados processos nos quais alteram drasticamente a homeostase e, consequentemente, a qualidade de vida dos pacientes. Dentre as alterações, liste-as.
RESPOSTA: As alterações incluem:
- Cicatrização como neuroma;
- Focos ectópicos (locais que não despolarizavam, despolarizando agora);
- Formação de novos canais de sódio e cálcio voltagem-dependentes;
- Brotamento (fibra A-beta na via da fibra C);
- Aumento do campo receptivo (formação de novas sinapses);
- Redução da expressão de receptores opioides;
- Expressão de receptores adrenérgicos na via da dor.
9. Dor do Membro Fantasma: Explicação
Explique a dor do membro fantasma.
RESPOSTA: A dor do membro fantasma refere-se a um indivíduo que sofreu a amputação de um membro, que é a forma mais drástica de ocorrer uma lesão em segmentos neurais. Ao ocorrer a amputação, várias fibras que levavam informação para o membro amputado são cortadas, como por exemplo a fibra de um motoneurônio alfa que fazia a contração muscular esquelética, a fibra proprioceptiva, a fibra mecanorreceptora e a fibra do tipo C.
Todas estas fibras cicatrizarão como um neuroma, que pode ser imaginado como um "botão" onde, quando ativado, despolarizará tudo. Então, ao despolarizar todas as vias, o paciente sentirá como se ainda tivesse o membro, experimentando dor em uma parte do corpo que já não existe.
10. Caso Clínico: Dor Neuropática e Uso de Anti-inflamatórios
Um paciente com o membro inferior esquerdo (MIE) amputado após uma cirurgia de pé diabético (4 semanas) está internado na clínica médica do hospital. O paciente refere hiperalgesia severa, com parestesia e alodinia no local da amputação. O médico solicita na farmácia um medicamento anticonvulsivante, chamado Pregabalina. No entanto, o farmacêutico liga para o médico e informa que o medicamento está em falta, perguntando se o médico não “pode trocar por algum anti-inflamatório, afinal o anti-inflamatório também tem efeito analgésico”. Baseado na afirmação do farmacêutico, responda se está certo ou errado. Se errado, por que?
RESPOSTA: O farmacêutico está errado.
Provavelmente, por ser um método extremamente invasivo, porém necessário ao paciente, o mesmo desenvolveu uma dor de caráter neuropática, a dor do membro fantasma. A dor do membro fantasma é mediada pela substância Fator de Crescimento Neural, não havendo ligação com a PGE2 da dor nociceptiva. Portanto, não há como encaixar um AINE (Anti-inflamatório Não Esteroidal) que inibe a COX.
O ideal é a utilização de medicamentos que atuem em canais iônicos voltagem-dependentes, como a Pregabalina que o médico receitou.