A Força de Trabalho em Marx: Valor, Críticas e Automação
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Resumo e Contribuição Marxiana
O duplo caráter da mercadoria, enquanto valor de uso e valor, e do trabalho, enquanto trabalho concreto, útil, e trabalho abstrato, bem como a rigorosa determinação da categoria força de trabalho, foram considerados pelo próprio Marx como os resultados mais importantes de seus estudos sobre a economia política. A diferenciação entre valor do trabalho e valor da força de trabalho constitui a chave para resolver a questão que confundia os economistas políticos clássicos: como o trabalho gerava mais-valor, pressupondo a troca entre equivalentes. Sendo o salário o valor relativo à força de trabalho e não ao trabalho ou ao produto do trabalho, ficava esclarecida a fonte do mais-valor, preservando-se a equivalência dos valores nas trocas das mercadorias, portanto, a obediência estrita à lei do valor.
Interpretações Reducionistas da Força de Trabalho
Apesar da importância inegável destas categorias, inclusive para distinguir a contribuição específica de Marx na solução dos quiproquós da economia política clássica, a categoria força de trabalho foi objeto de interpretações que desvirtuam a sua natureza, na medida em que a complexidade do seu conteúdo é reduzida a uma simples medida do valor, mais próxima do trabalho abstrato do que do trabalho concreto. A força de trabalho é comumente considerada como:
- Uma simples categoria econômica, que expressa a dominação do capital sobre o trabalho, e não como um lugar de contradições entre o processo de valorização e os aspectos subjetivos do processo de trabalho.
- Simples força física, por conseguinte, como trabalho desqualificado, atividade manual ou trabalho simples.
Decorre desta última concepção que os progressos da automação (o sistema de maquinaria, nos termos de Marx), na medida em que eliminam ou reduzem drasticamente o trabalho imediato e direto, sejam acompanhados de prognósticos sobre o fim do trabalho ou mesmo sobre o fim da teoria do valor-trabalho.
Críticas Pós-Althusser e a Incompreensão Marxiana
A incompreensão em torno da solução marxiana das contradições da economia política clássica, em especial no que diz respeito à categoria força de trabalho e à relação entre valor de uso e valor, deixa o caminho livre para imputações de concepções reducionistas da natureza do trabalho. Chega-se a apresentar Marx como:
- Um continuador de Smith e Ricardo, na busca de uma medida objetiva do valor e das trocas econômicas (F. Vatin. Économie et Physique).
- Alguém que estaria aquém de Aristóteles, afinal de contas correto ao afirmar a incomensurabilidade entre duas coisas qualitativamente diferentes (C. Castoriadis. De Aristóteles à Marx et rétour).
- Um pensador que superestima o valor dos conceitos em detrimento das realidades mutáveis das situações de trabalho (Y. Schwartz. Expérience et connaissance du travail).
Por outro lado, descobertas recentes no campo das ciências do trabalho (sociologia, economia, psicologia e ergonomia), em torno das qualificações informais presentes em qualquer situação de trabalho, mesmo em suas formas mais taylorizadas, colocam em xeque a tese bravermaniana da expropriação total do trabalho pelo capital e corroboram interpretações de cunho filosófico que negam a existência quer do trabalho abstrato, quer do trabalho simples. Como sintetiza Wood: "The implication of the concept of tacit skills is certainly that workers cannot be reduced to the kind of automatons implied by simple deskilling theses." (S. Wood. The Deskilling Debate). A consequência do conceito de habilidades tácitas é, certamente, que os trabalhadores não podem ser reduzidos a uma espécie de autômatos, como decorrente das teses da desqualificação.
Ora, desde o seu tempo, Marx havia sofrido críticas por ter desprezado o valor de uso em suas análises econômicas (ver Glosas a Adolph Wagner), como também já se antecipara às dificuldades para se entender as "sutilezas metafísicas" de sua análise da mercadoria. As respostas a estas críticas e suas análises sutis das relações entre valor e valor de uso são mais do que esclarecedoras da improcedência destas e de outras críticas ou interpretações reducionistas da concepção marxiana do trabalho e, em especial, das relações entre valor e valor de uso no caso da mercadoria força de trabalho. É precisamente isto que pretendemos demonstrar neste texto.
Método de Investigação e Forma de Exposição
Cumpre, inicialmente, esclarecer em que estas dificuldades de compreensão da obra marxiana decorrem da relação entre a forma de exposição e o método de investigação, assim como os objetivos declarados pelo próprio Marx ao redigir as obras de maturidade, as ditas obras "econômicas", nas quais trata com mais profundidade da economia política. Com efeito, ao privilegiar determinadas relações e categorias com o propósito de revelar a "anatomia da sociedade burguesa", a forma de exposição leva alguns intérpretes a falsas conclusões quando tomam a parte pelo todo, isto é, quando sobrevalorizam certas passagens descontextualizadas do conjunto da obra, quase sempre quando Marx coloca em prática a "força da abstração", para apresentar as formas da produção mercantil de modo mais "puro", desprovido das condições perturbadoras. Ao se tratar do capital enquanto capital, deveria ser evidente que a exposição deve necessariamente privilegiar as relações e mecanismos econômicos em sua forma pura, ou seja, segundo a lógica imanente do valor, portanto, sem os efeitos "perturbadores", devidamente entendidos do ponto de vista do capital.
A Automação e a Interpretação do Grundrisse
O mesmo ocorre em relação às questões suscitadas pelas novas tecnologias, em particular a automação. Nesse sentido, uma referência recorrente tem sido a seguinte passagem dos Grundrisse: "O processo de produção deixou de ser um processo de trabalho no sentido de que o trabalho, como a unidade que o domina, seria o momento predominante" (Der Produktionsprozeß hat aufgehört Arbeitprozeß in dem Sinn zu sein, daß die Arbeit als die ihn beherrschende Einheit über ihn übergriffe. Grundrisse, p. 585).
Nesta passagem, o termo "Einheit" (literalmente "unidade") tende a ser entendido como se o processo de trabalho fosse equivalente ao processo de produção, isto é, como uma unidade que se substitui a outra unidade, no sentido de conjunto, não como um elemento do conjunto constituído pelo processo de produção, no qual predomina ora um ora outro de seus elementos, que lhe atribui a característica de um conjunto, mas particularmente as características de "coesão" e de "continuidade" (duas outras possíveis traduções de "Einheit").
Entender o processo de trabalho como unidade, no sentido do todo, significa torná-lo equivalente ao processo de produção e não como um de seus elementos constituintes, o que tornaria a frase redundante e sem sentido. O correto, portanto, é concluir que o trabalho deixa de ser o momento predominante, que assegura a coesão e a continuidade do processo de produção, mas não que seja excluído de um processo de produção tornado totalmente objetivo, ou que o trabalho seja supérfluo nos sistemas automatizados.
Esta última interpretação pode, evidentemente, encontrar respaldo nos próprios textos de Marx, dada a ênfase circunstancialmente dada aos aspectos objetivos do processo de produção, ao capital enquanto capital. Nos Grundrisse, em seguida à passagem citada, pode-se ler: "Le procès de production a cessé d’être procès de travail au sens où le travail consideré comme l’unité qui le domine serait le moment qui détermine le reste. Le travail n’apparaît au contraire que comme organe conscient, placé en de nombreux points du système mécanique, dans des ouvriers vivants pris un à un; dispersé, subsumé sous le procès global de la machinerie elle-même, n’étant lui-même que une pièce du système, système dont l’unité [Einheit] existe, non dans les ouvriers vivants, mais dans la machinerie vivante (active) qui aparraît face à l’activité isolée insignifiante de cet ouvrier comme un organisme lui imposant sa violence. Dans la machinerie, le travail objectivé se présente face au travail vivant dans le procès de travail lui-même comme ce pouvoir qui le domine, que le capital est par sa forme, en tant que appropriation du travail vivant". (Manuscrits de 1857-1858, vol II, p. 185)
Sem aprofundar aqui a discussão sobre a natureza do trabalho, ou atividade de vigilância, no processo de produção automatizado, deve ser observado que toda a passagem citada reafirma a permanência do trabalho e do processo de trabalho no interior do processo de produção, ainda que de forma "insignificante" ou "acessória". Não obstante, os trabalhadores ainda constituem as peças vivas e conscientes do processo de produção objetivado. A violência, a dominação possibilitada pela subsunção real, consiste precisamente nisto: em que o trabalho morto se apresenta como se fosse o elemento ativo do processo de produção (que ainda é processo de trabalho). A máquina, enquanto capital, em sua forma capitalista, é utilizada como meio de dominação do trabalho que, portanto, de uma forma ou de outra, ainda deve ser subjugado. Se a exclusão do trabalho vivo pudesse se completar, não haveria necessidade de se recorrer à dominação pela violência, de algo que seria apenas residual no processo de produção. Não haveria nada que pudesse opor resistência, no interior do próprio processo de produção, à dominação do capital. Este, enfim, teria se tornado independente e livre do trabalho vivo, tornado desnecessário e supérfluo, portanto, inoperante. O caráter acessório, insignificante, da atividade de trabalho é uma resultante da forma capitalista de utilização da maquinaria, na medida em que o capital busca configurar o processo de trabalho da forma que lhe é mais conveniente. Esta é, desde o início, a luta que revela a natureza intrinsecamente contraditória do processo de produção, que não é, como qualquer contradição real, resolvida de um só golpe.
A Persistência do Valor e a Contradição Real
Tornou-se igualmente comum dizer, nestas condições, que a medida do valor deixou de valer, foi implodida pelo próprio desenvolvimento das forças produtivas, pelo imenso acúmulo de riquezas na forma de trabalho morto. Antes de tratar a questão do fim da teoria do valor-trabalho na produção atual, talvez seja útil entender se, de fato, a medida alguma vez existiu, isto é, se e como o capital opera a equivalência dos diversos valores. Para tanto, é que tomaremos como objeto de investigação o problema da determinação do valor da força de trabalho. Neste caso, acompanhando de perto os textos de Marx, percebe-se que a quantificação do valor da força de trabalho, e sua manifestação na forma de salário, não implica que a força de trabalho seja uma categoria exclusivamente econômica. Assim, não há razão para propugnar o fim do valor como medida econômica e meio de regulação das trocas sociais, pois, de fato, o valor nunca foi mecanismo efetivo de regulação, na medida em que categorias econômicas não podem ser realmente ativas. Deste modo, não pode deixar de ser efetivo algo que nunca o foi. O que falta neste contexto é uma exata compreensão de como interagem as categorias que estão em oposição no interior de uma unidade contraditória.
Cabe aqui discutir o que é, para Marx, "resolver uma contradição". Uma contradição real não se resolve pela eliminação de uma das partes em oposição, o que significa o próprio fim da unidade contraditória, cuja existência só se dá na forma de processo. A contradição capital-trabalho consiste precisamente em que os termos antagônicos só existem no interior de uma unidade contraditória, que, precisamente por ser contraditória, não se constitui enquanto unidade estável, mas apenas na forma de um processo perene de luta. Por isso a passagem da subsunção formal à subsunção real (introdução da maquinaria) não pode ser entendida como um momento, e sim como um processo inacabado, no qual a independência do capital em relação ao trabalho vivo é apenas relativa, vale dizer, no qual se repõe, sob novas formas, a dependência do capital em relação ao trabalho vivo, ainda que a objetivação do processo de trabalho seja crescente. O trabalho continua a desempenhar um papel essencial no processo de trabalho automatizado, o que exige que voltemos nossa atenção para as funções de controle e de vigilância do sistema de maquinaria.
De nada adianta dizer que é contraditório um processo de produção cuja base de extração de mais-valia está reduzida a um mínimo, com a redução do trabalho direto, pois o ardil do capital consiste justamente em encontrar formas para que estas contradições funcionem. A questão atual é saber que formas são estas e como elas continuam a viabilizar a valorização.