h2: Epistemologia: Estrutura, Natureza e Fundamentos do Conhecimento

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Apontamentos de Filosofia I

I – Estrutura do Ato de Conhecer

A Sensação, a Perceção e a Razão

A sensação é o primeiro acesso ao mundo exterior. É uma vivência simples, produzida pela ação de um estímulo (interno ou externo) sobre um órgão sensorial, transmitida ao cérebro através do sistema nervoso. Por isso, possibilita o contacto e o acesso aos objetos (reais e físicos), apreendendo-os. Contudo, uma sensação não é pura, pois é a base da nossa perceção.

Quando recebemos um estímulo, essa sensação apresenta-se como uma forma mais complexa: a forma da perceção. Nela, o ser humano descodifica, configura, interpreta e atribui sentido às coisas, fazendo juízos de valor e trabalhando com os dados sensoriais. Conclui-se, assim, que a sensação e a perceção têm conectividade.

A perceção depende dos dados sensoriais e da própria subjetividade do sujeito, pois este organiza os dados sensoriais numa totalidade de acordo com certos fatores como a personalidade, o sistema nervoso, o contexto, a educação, a cultura, etc.

A sensação e a perceção são condições necessárias para que se desenvolva o conhecimento, mas elas por si só não conseguem garanti-lo.

Passamos então para o domínio da razão. Para além de haver um conhecimento percetivo, há um conhecimento racional. Este consiste na elaboração de representações mentais abstratas e no estabelecimento de relações lógicas entre os dados percetivos. Vai permitir a universalidade, dado que as provas racionais apresentadas, apesar de serem relativas a cada sujeito, são compreendidas por outros sujeitos, permitindo assim a comunicação e a intersubjetividade.

O Sujeito e o Objeto, e as Suas Funções

Em todo o conhecimento, encontram-se face a face um “cognoscente” (aquele que conhece) e um “conhecido” – um sujeito e um objeto.

O conhecimento é o ato no qual o sujeito e o objeto entram em relação, e dessa relação resulta a afeção do sujeito pelo objeto e a apreensão do objeto pelo sujeito.

Há uma relação recíproca entre o sujeito e o objeto: o sujeito só tem a sua função em relação ao objeto e o objeto de conhecimento só o é em relação ao sujeito. Esta correlação não significa que sejam elementos permutáveis; o sujeito não pode ser objeto e o objeto não pode ser sujeito, porque os seus papéis são diferentes, as suas funções são na sua essência diferentes:

  • A função do sujeito é adquirir as características do objeto e avaliá-las (ATIVO).
  • A função do objeto é de ser conhecido pelo sujeito e sê-lo eficazmente (PASSIVO).

Ao apreender o objeto, o sujeito não apreende o “objeto” em si, mas sim uma imagem ou representação daquilo que o sujeito apreende. As qualidades não são retiradas ao objeto, entrando fisicamente na consciência do sujeito, sob forma de imagem. Essa imagem tem de ter alguma relação com o objeto, mas não é o objeto em si. Por conseguinte, a atividade do sujeito na construção da representação do objeto não exclui, mas antes exige, a transcendência do objeto em relação à consciência que o representa. Deste modo, no conhecimento, o objeto não se altera, mas sim o sujeito: nasce nele a consciência do objeto.

CONHECIMENTO

SUJEITO <--> OBJETO

REPRESENTAÇÃO

Realismo Ingénuo

O Realismo Ingénuo é uma doutrina filosófica segundo a qual a mente humana apreende as características do mundo exterior tal e qual como ele é.

No realismo ingénuo, o sujeito tem a realidade espelhada em si, portanto, não pode dar opiniões, apenas se limita a retratar o que vê. Deste modo, o sujeito é passivo, pois possui a informação e transmite-a, mas não tem a oportunidade de a processar e interpretar.

Ao contrário do realismo ingénuo, temos a perceção, que se adequa mais à realidade. O sujeito apreende as características do objeto (exterior ao sujeito e nunca imanente), elabora uma representação mental desse mesmo objeto e faz as suas interpretações. Para cada objeto pode haver diferentes perceções, dado que o sujeito é livre de expressar a sua opinião e pode interpretar da sua maneira, sendo assim um sujeito ativo.

Descrição Fenomenológica do Ato de Conhecer

Para os fenomenólogos, o conhecimento é um fenómeno puro, de consciência de algo exterior a nós, desligado de quaisquer particularidades (objeto e sujeito no geral, desligados de qualquer descrição particular).

A análise fenomenológica não se interessa se se conhece com os sentidos, com a razão, por intuição ou dedução, etc., nem que tipo de conhecimento é. Interessa sim o facto de como é que tivemos a consciência. Assim, a fenomenologia do conhecimento considera apenas o conhecimento em si mesmo, a sua estrutura essencial.

Perspetivado como um fenómeno que ocorre sempre que um sujeito conhece, os fenomenólogos procuram descrevê-lo para clarificar o seu significado essencial. (Nota: “sujeito e objeto, as suas funções” fazem parte da descrição fenomenológica).

II – A Natureza do Conhecimento

Tipos de Conhecimento

  • Direto:
    • Contacto – tipo de conhecimento que possuímos quando conhecemos pessoalmente uma pessoa ou algo.
    • Atividade – tipo de conhecimento requerido para a execução de certas atividades (saber fazer).
  • Indireto:
    • Saber que – tipo de conhecimento a que se chama “conhecimento proposicional”, pois o seu objeto é uma proposição verdadeira. É aquilo que nos é transmitido. Ex: saber que Lisboa é a capital de Portugal.

A Definição de Conhecimento

O conhecimento é um estado no qual uma pessoa está em contacto cognitivo com a realidade. É, portanto, uma relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento.

Todo o conhecimento envolve uma crença, pois ao acreditarmos nela, queremos dizer que a sabemos, logo é conhecimento. Uma crença é qualquer tipo de convicção que uma pessoa possa ter e resulta da relação entre o sujeito que tem a crença e o objeto dessa crença. Porém, acreditar apenas em algo não faz disso uma verdade. Para que se possa saber algo, não temos somente que acreditar nisso, como também tem de ser verdade. A crença é uma condição necessária para o conhecimento, no entanto, não é suficiente: saber e acreditar são coisas distintas.

Contudo, uma crença que se revele verdadeira também não é conhecimento. O conhecimento é factivo, ou seja, não se pode conhecer falsidades. É diferente pensar que se sabe algo do que realmente saber, pois aí já temos garantia de que é verdade. A verdade é assim uma condição necessária para o conhecimento.

Para haver conhecimento, não se pode ter apenas sorte em acreditar naquilo que é verdadeiro; tem de haver algo mais que distinga o conhecimento da mera crença verdadeira. Assim, segundo Platão, para além de verdadeira, a crença tem de ser justificada, para que realmente possa haver conhecimento. Tem de haver provas, razões, justificações que suportem a crença verdadeira.

Posto isso, a definição tradicional de conhecimento é que, para se ter conhecimento, tem de se ter uma crença verdadeira justificada. Apesar de, separadamente, nenhuma das condições ser suficiente para o conhecimento, tomadas juntas parecem ser suficientes.

Ceticismo, Dogmatismo e Fundacionismo

O Ceticismo

Os céticos defendiam que devíamos duvidar daquilo que possamos saber, pois de facto tudo é relativo à perceção de cada sujeito. A partir da dúvida não pretendemos chegar a algo, não tiramos nenhuma conclusão. A dúvida não é nenhum meio de chegar à verdade, pois esta e o conhecimento não são possíveis. A dúvida é assim o resultado da teoria cética, a forma radical de duvidarmos de todos os conhecimentos. É radical porque coloca tudo em causa, inclusive o fundamento do nosso conhecimento.

Pressupostos do Ceticismo:

  • O sujeito é ativo (pois constrói uma imagem da realidade quando a perceciona).
  • O sujeito apenas conhece aquilo que constrói a partir da sua perceção (objeto gnosiológico).

O Dogmatismo

Para contrariar o ceticismo, temos o dogmatismo (dogma: verdade incontestável). O Dogmatismo é o contrário do Ceticismo, pois defende que o conhecimento realmente é possível.

Pressupostos do Dogmatismo:

  • O sujeito é passivo.
  • O sujeito conhece a realidade em si porque apenas recebe, sem processar e interpretar o objeto real em si.

O Fundacionismo

Em resposta ao ceticismo, temos o fundacionismo. De acordo com o fundacionismo, há dois tipos de crenças:

  • Crenças básicas (justificam-se a si mesmas).
  • Crenças não básicas (justificadas por outras crenças).

O fundacionismo defende que as crenças básicas são o que constituem os nossos fundamentos, isto é, são os alicerces do “edifício do saber”. São as bases do nosso conhecimento que não precisam de ser justificadas por outras crenças, refutando a regressão de que os céticos falam.

Dois Tipos de Fundacionismo:

  • Clássico (crenças básicas são fornecidas pela experiência).
  • Cartesiano (crenças básicas são fornecidas pela razão).

René Descartes e a Dúvida Metódica

O fundacionismo cartesiano é defendido por Descartes.

O objetivo de Descartes é encontrar os fundamentos de todo o conhecimento. Para mostrar que os céticos estão errados, Descartes propõe um método: a dúvida metódica.

A dúvida metódica constitui um método de investigação da verdade, tomando como falsas todas as nossas crenças, de forma a encontrar primeiros princípios que possam servir de fundamento, sendo o principal objetivo da dúvida metódica, encontrar uma crença indubitável (não se pode duvidar dela).

Características do Conhecimento Cartesiano:

  • O conhecimento tem de ser indubitável e intuído com evidência.
  • Tem de ser claro e distinto, pois se não for, é duvidoso e não é um verdadeiro conhecimento.
  • Tem de ser imediato ao espírito.

A dúvida é hiperbólica porque considera como absolutamente falso o que for minimamente duvidoso, ou seja, vai colocar tudo em causa, incluindo o próprio eu, enquanto ser pensante. É uma dúvida radical, pois aplica-se a tudo.

Razões para Duvidar

  1. As Informações dos Sentidos: A dúvida aplica-se em primeiro lugar às informações dos sentidos. Os sentidos são enganadores, tendo que se pôr em causa as informações que os sentidos nos fornecem. Descartes rejeita, assim, a origem a posteriori do conhecimento, que começa com a experiência, com a informação dos sentidos.

  2. A Hipótese do Sonho: Como é que eu sei se aquilo que estou a ver não é senão um sonho? Qual será o critério de distinção? Não temos critérios convincentes, dado que aquilo que vivemos no sonho é igual à suposta realidade. Deste modo surge a suspeita de que tudo o que nós consideramos como real, não seja mais do que uma ilusão.

  3. A Hipótese do Génio Maligno: Descartes levanta a hipótese de termos conhecimentos seguros através das evidências matemáticas. No entanto, coloca em dúvida o próprio conhecimento matemático pela hipótese da existência de um génio maligno. Aquilo que Descartes considerava verdadeiro vai ser posto em causa pela hipótese de um génio maligno, que me faz acreditar no que lhe bem apetece, podendo me enganar sistematicamente.

Há que colocar tudo em causa, desde os sentidos, desde a certeza dos conhecimentos matemáticos, etc.

O Cogito: A Primeira Certeza

Ao duvidar, chegaremos a uma primeira certeza:

“SE PENSO LOGO EXISTO!”

Este primeiro princípio foi obtido através da razão, podendo-se verificar que a aplicação da dúvida acaba por nos conduzir ao primeiro princípio do sistema do saber (o cogito).

“Penso logo existo” é a primeira verdade, pois é impossível falar do ato de duvidar sem supor como sua possibilidade a existência do sujeito que realiza esse ato. Descartes fala na primeira pessoa na medida em que, cada um sabe sem dúvida possível que pensa, logo, existe, mas daí não se segue que possa saber o mesmo acerca de qualquer outra coisa além de si.

O cogito é uma crença indubitável e uma ideia clara e distinta, pois apresenta-se com tal evidência no nosso espírito que não podemos duvidar da sua verdade.

Distinção entre Tipos de Ideias:

Descartes evidencia a distinção entre 3 tipos de ideias:

  • Adventícias: Têm origem nos sentidos, não sendo fontes de conhecimento seguros.
  • Factícias: São produzidas pela imaginação, são forjadas. Há uma mistura entre diversas realidades.
  • Inatas: São ideias que já nascem connosco.

Deus Existe: A Garantia da Verdade

Ao ser um ser que duvida, sou imperfeito, não tenho a certeza dos conhecimentos. Como posso ter em mim a ideia da perfeição?

A ideia da perfeição surge com a existência de Deus. Descartes não poderia ter consciência de que é um ser imperfeito se não tivesse noção da ideia de perfeição. Conclui que tem de haver um ser perfeito, ou seja, Deus existe. Considera assim demonstrada a existência de Deus.

Provada a existência de Deus, Descartes chega à conclusão que a suspeita do génio maligno não faz sentido, pois Deus, sendo perfeito, não nos engana (enganar é sinónimo de imperfeição), sendo até a garantia da verdade das nossas evidências e dos nossos conhecimentos. Apenas Deus pode criar em nós a ideia de perfeição, logo existe. O saber firme e seguro só pode ser assegurado pela veracidade divina. Deus surge como garantia das verdades matemáticas e racionais, acabando por ser a verdadeira raiz da árvore do saber. Como Deus é uma realidade absoluta e metafísica e garante a verdade dos nossos conhecimentos, diremos que o saber recebe uma fundamentação metafísica.

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