Igreja, Liberalismo e Ciência no Século XIX
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Novas Bases da Sociedade Liberal
O século XIX marcou uma profunda transformação nas relações entre Estado e Igreja, estabelecendo as bases da sociedade liberal:
- A autoridade é vista como de origem puramente humana, não mais sagrada; o povo pode depor governantes.
- A unidade política baseia-se na identidade de interesses, sem discriminações confessionais; há emancipação de católicos, protestantes e judeus.
- O Estado não tem religião oficial, afirma a liberdade de consciência e elimina privilégios de cultos específicos.
- As leis civis ignoram a organização canônica, podendo divergir dela.
- Atividades antes da Igreja passam ao Estado: registros civis, cemitérios, caridade, hospitais e assistência, transformando-se em previdência social.
- Eclesiásticos perdem privilégios do Antigo Regime, permanecendo apenas a liberdade de culto.
Restauração – Congresso de Viena (1815)
Após 25 anos de transformações revolucionárias, tentou-se restaurar o ancien régime e reaproximar trono e altar. A Santa Aliança (Áustria, Prússia e Rússia) visava restabelecer a ordem tradicional. O romantismo reforçou essa tendência, valorizando a tradição e o cristianismo em oposição ao racionalismo iluminista.
Os Desdobramentos na França
Após Napoleão, buscou-se restaurar a situação pré-1789. Intelectuais como Joseph de Maistre defenderam a soberania absoluta do papa, vinculando-a à infalibilidade (ultramontanismo).
Liberalismo Católico
Com a Revolução de Julho (1830), rompeu-se a aliança trono-altar. Lamennais propôs uma aliança entre Igreja e liberdade, unindo ultramontanismo e democracia, defendendo a autoridade perpétua do papa como garantia de liberdade.
Condenação do Liberalismo Católico – Mirari Vos (1832)
Gregório XVI condenou as ideias de Lamennais, rejeitando a liberdade de consciência, de imprensa e a separação entre Igreja e Estado. Isso dificultou movimentos católicos liberais, especialmente na Bélgica, onde havia constituição favorável à liberdade religiosa. Roma manteve a rejeição a qualquer associação entre Igreja e democracia.
Redescoberta da Idade Média
Em oposição ao iluminismo, a Igreja e a teologia redescobriram a Idade Média, valorizando a escolástica, o tomismo e as fontes medievais. O catolicismo foi identificado como cultura por excelência, reforçando uma apologética que via na Reforma um desvio e na tradição medieval a essência da fé e da civilização cristã.
Estado e Igreja no Século XIX (Guido Zagheni)
Separação da Igreja do Estado
O Estado liberal do século XIX não se fundamenta em Deus, mas na razão e no contrato social. A religião passa a ser entendida como assunto privado, sem proteção oficial. Na prática, embora se falasse em separação, o Estado impunha restrições à Igreja, limitando sua expressão comunitária e influenciando a legislação pública.
Concordatas
Como reação ao laicismo, a Igreja defendeu seu direito de existir como realidade pública e buscou nas concordatas uma forma de manter garantias mínimas nas relações com os Estados.
Laicização da Sociedade e Jurisdicionalismo
O Estado liberal não reconhecia a Igreja como sociedade de direito público. Assim, retirava apoios, exercia rígido controle e aplicava medidas de jurisdicionalismo, antes usadas na proteção confessional, mas agora em chave de limitação da Igreja.
Desdobramentos do Jurisdicionalismo:
- Confisco dos bens eclesiásticos – justificado por má administração ou modernização do Estado, mas com resultados negativos devido à queda de valor dos imóveis.
- Supressão das ordens religiosas – expulsões, proibições de votos e noviciados, mas com pouco êxito duradouro.
- Casamento civil e divórcio – introduzidos na Revolução Francesa e difundidos por Napoleão; abolidos em 1815, foram reintroduzidos gradualmente pelos Estados liberais.
- Laicização da escola – retirada do ensino religioso, corte de subvenções às escolas confessionais e supressão do ensino não-estatal.
- Abolição das imunidades eclesiásticas – especialmente do foro, recriando tensões com a Igreja.
As Revoluções e a Rerum Novarum
Revoluções e a Ameaça ao Capital
No século XIX, os trabalhadores começaram a se organizar em movimentos revolucionários, exigindo sufrágio universal e melhores condições de vida. Um marco foi a Comuna de Paris (1871), que durou 72 dias e propôs ensino gratuito e laico, redução da jornada e do trabalho noturno, abolição da pena de morte, sindicatos legalizados e reforma social profunda. Esse movimento foi violentamente reprimido. A Igreja, diante dessa nova realidade, começou a refletir sobre os problemas sociais que a modernidade apresentava.
Primeira Parte da Rerum Novarum
O documento surge como resposta à “esperança socialista” que crescia entre os trabalhadores e movimentos comunistas. Leão XIII analisa as agitações sociais como problema real, mas vê no comunismo a principal ameaça. Reconhece que a ordem social já não se baseava na política, mas na economia, exigindo respostas novas.
Segunda Parte da Rerum Novarum
Leão XIII também observa que a burguesia, antes revolucionária contra o feudalismo, passou a dominar os Estados em moldes parlamentares. Embora revestisse o governo de aparência democrática, mantinha intocada a ordem social. O liberalismo, inspirado em Locke, deslocava a legitimidade política do direito divino para o contrato social. Marx, em contraposição, via o homem definido pelo trabalho e pela produção, em uma concepção antropológica diferente da liberal.
O Papel da Burguesia e a Secularização
A burguesia, que antes incentivava as revoluções contra a sociedade feudal, passou a combatê-las quando ameaçavam sua hegemonia, associando-as ao comunismo. Nesse cenário, cresce a secularização: a Bíblia foi motor de alfabetização, mas também de questionamento da autoridade eclesial. O liberalismo de Locke deslocou a origem do poder de Deus para a decisão humana, e a cultura burguesa gerou um ambiente agnóstico e utilitarista, no qual a mística católica foi substituída pela contemplação da propriedade privada. O triunfo burguês consolidou uma cultura secularista iluminista, marcada por Kant e Hume.
A Antropologia Burguesa e o Contexto da Encíclica
A visão burguesa era prática e utilitarista, reduzindo a vida à dimensão econômica. Nesse ambiente, Leão XIII escreve a Rerum Novarum, reconhecendo a inevitabilidade das inovações e denunciando tanto os excessos do capitalismo quanto os riscos do comunismo. O documento entende que as mudanças sociais não poderiam mais ser vistas apenas na esfera política, mas sobretudo na econômica.
Estrutura e Orientações da Rerum Novarum
Nos números 3 a 9, Leão XIII discute o socialismo; no número 10, aponta a orientação verdadeira, que seria a via da Igreja. A encíclica propõe concórdia social, não revolução de classes: a Igreja aparece como patrona da moral social e o Estado como guardião da lei. Retomando Santo Tomás de Aquino e Aristóteles, Leão XIII defende que a propriedade privada não é um fim, mas um meio, e condena a usura e a exploração.
Limites e Críticas
Segundo o professor, a encíclica aborda os abusos do patrão como problemas de ordem moral, sem criticar a estrutura capitalista em si. O documento atribui o mal social ao pecado pessoal (RN 3), enquanto a crítica marxista vê o problema na própria lógica do modo de produção. Mesmo assim, a Rerum Novarum inaugurou a Doutrina Social da Igreja, propondo soluções como a harmonia entre patrões e trabalhadores, sob a moral cristã e a legislação estatal.
A Igreja e a Revolução Científica
Premissa: Intimidação à Teologia Católica
A relação da Igreja Católica com a ciência moderna, a partir do século XVII, foi ambivalente: de um lado, apoio; de outro, condenação. A visão anticlerical sustentava que a ciência progrediu contra a Igreja, mas historiadores recentes ressaltam a continuidade com a racionalidade medieval, que contribuiu para a ciência moderna.
Do Concordismo Tradicional ao Neotomismo
No século XIX, o magistério católico aceitava descobertas da física, química e astronomia, mas o fixismo ainda predominava nos manuais de teologia. As descobertas geológicas e paleontológicas geravam debates, sem consenso. Muitos sacerdotes atuavam como cientistas amadores, enquanto os seminários permaneciam distantes das novidades científicas.
Neotomismo de Leão XIII e a Bíblia
A encíclica Providentissimus Deus (1893) limitou as tentativas de conciliar o Gênesis com a ciência. Leão XIII ensinou que os autores bíblicos não tinham intenção de ensinar ciências naturais, mas transmitir verdades salvíficas, permitindo leituras figuradas do texto sagrado.
Darwinismo versus Magistério
Com a publicação de A Origem das Espécies (1859), abriu-se uma polêmica. O Syllabus de Pio IX e o Vaticano I não mencionaram explicitamente a evolução. O Concílio de Colônia (1860) condenou a teoria, mas de forma limitada. Havia posições variadas dentro do catolicismo, entre defensores de uma leitura literal e os que toleravam o evolucionismo, seja darwiniano, seja neolamarckista.
Endurecimento do Magistério e Apologética
O Vaticano I reafirmou a complementaridade entre fé e razão. A apologética passou a usar a ciência para defender o dogma, mas o ponto delicado foi a evolução humana, que parecia sem direção teleológica. Cientistas católicos divergiam, alguns favoráveis à evolução, outros contrários. George Mivart, por exemplo, tentou uma síntese crítica de Darwin, recebendo elogios de Newman e Pio IX, mas acabou excomungado por outros motivos. A Civiltà Cattolica reforçou o endurecimento do Vaticano no final do século XIX.
Teologia Católica Desacreditada
Autores anticristãos como Draper, White e Haeckel difundiram a ideia de que a Igreja era inimiga da ciência, associando-a ao obscurantismo. Em países como Espanha e Itália, a discussão sobre o darwinismo foi marcada por tensões políticas, nas quais a Igreja era parte central.
Dificuldade de Mostrar a Igreja Amiga da Ciência
A Igreja afirmava apoiar a ciência, mas sempre sob a tutela do magistério. A encíclica Aeterni Patris (1879), de Leão XIII, incentivava as ciências físicas e naturais, mas subordinadas à filosofia escolástica e à teologia. Buscou-se desenvolver uma “ciência católica”, porém sem grande êxito.
Enciclopédias Católicas e o Modernismo
No início do século XX, com a condenação do Modernismo por Pio X, as discussões sobre evolução foram freadas. Surgiram grandes compilações apologéticas, como a Catholic Encyclopedia (1909), o Dictionnaire apologétique de la foi catholique (1922), o Dictionnaire de Théologie Catholique (1946) e Le darwinisme au point de vue de l’orthodoxie catholique (1921).
Cautela e Ousadia em Meados do Século XX
Sob Pio XI, abriu-se espaço para maior diálogo com a ciência. A consagração do padre Georges Lemaître como cosmólogo e a refundação da Academia Pontifícia de Ciências (1936) reforçaram a imagem da Igreja como amiga da ciência, embora o evolucionismo ainda fosse tratado com cautela.
Humani Generis (1950)
Na encíclica de Pio XII, a evolução foi considerada hipótese legítima, mas com restrições. Reconheceu-se a possibilidade de compatibilidade com a fé, desde que respeitadas a Escritura e a tradição. O documento foi prudente, mas marcou avanço em relação às posições anteriores.
Teilhard de Chardin e o Vaticano II
Nos anos 1950, o pensamento de Teilhard de Chardin trouxe uma nova fundamentação teológica para a evolução, especialmente para a hominização, antes vista com resistência. Seu impacto, junto com teólogos como Karl Rahner, preparou o terreno para o Vaticano II, que assumiria uma postura mais aberta ao diálogo entre ciência e fé.