Manrique e o Raio de Luar

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Era nobre, e havia nascido em meio ao fragor das armas; mas o grito estranho de uma trombeta de guerra não o fez levantar a cabeça um instante, nem desviar os olhos do escuro ponto do pergaminho em que lia a última carta de um trovador.

Aqueles que o viam, pensavam que não tinha de olhar para o amplo pátio do seu castelo, onde os potros noviços domavam, as páginas ensinavam a voar os falcões e os soldados se entretinham ao sábado a afiar o ferro do seu martelo sobre uma pedra.

— Onde está Manrique? Onde está o teu mestre? — perguntava a sua mãe, às vezes.

— Não sei — respondiam os seus servos — talvez no claustro da Rocha, sentado à beira de um túmulo, ouvindo para ver se surpreendia alguma palavra da conversa entre os mortos; ou no convés, olhando as ondas do rio correrem uma após outra, por baixo dos arcos; ou acurrucado no desmoronamento de uma rocha, a divertir-se com as estrelas do céu, ouvindo passar uma nuvem ou vendo passar como sopros de vapor na face dos ocos. Em qualquer parte, em fim, onde não estivesse ninguém.

Na verdade, Manrique amava a solidão, e amava-a tanto que às vezes queria não ter sombra para que a sua sombra não o seguisse por toda a parte.

Amava a solidão, porque dentro dela, dando livre curso à imaginação, criava um mundo fantástico, povoado de estranhas criações, filhas dos seus delírios e dos sonhos de poeta, porque Manrique era poeta, pois nunca encontrara formas que pudessem encerrar os seus pensamentos, e nunca os encerrara a escrever!

Acreditava que, entre as brasas vermelhas do fogo da lareira, habitavam espíritos de mil cores, como átomos de ouro que se revolvem, ou dançando numa roda de faíscas brilhantes à altura das chamas, e passava horas mortas sentado num banquinho junto à alta lareira gótica, imóvel e olhando para o fogo.

Pensava que no fundo das ondas do rio, entre os musgos da fonte e os vapores do lago, vivia uma mulher misteriosa, fada, sereia ou silfo, que exalava suspiros e queixumes, cantava e ria com o som monótono da água, rumor que ele ouvia em silêncio, tentando traduzir.

Nas nuvens, no ar, na floresta, nas fendas das rochas, imaginava perceber ou ouvir sons misteriosos, formas de seres sobrenaturais, palavras inteligíveis que ele não conseguia entender.

Amar! Nascera para sonhar com o amor, não para senti-lo. Amava todas as mulheres por um momento: a última, porque era loura; uma antiga, porque os seus lábios eram vermelhos; outra, porque o seu andar se balançava como um junco.

Às vezes, o delírio chegou ao ponto de passar uma noite inteira olhando para a lua, flutuando no céu entre um vapor de prata, e para as estrelas que tremiam na distância, como gemas cambiantes. Nestas longas noites de insónia poética, exclamava:

— Se é verdade, como o prévio da Peña me disse, que é possível que estes pontos de luz sejam mundos; se é verdade que nesse balão de nuvens de pérola rolando vivem gentes, quais não serão as mulheres tão formosas mulheres nestas regiões brilhantes! E eu não as posso ver, e eu não as posso amar... Qual será a sua beleza?... Como será o seu amor?

II. O Convento dos Templários

Sobre o Douro, passando as pedras deterioradas e escuras que lambem as muralhas de Soria, há uma ponte que conduz da cidade ao antigo convento dos Templários, cujos bens se estendiam ao longo da margem oposta.

No momento a que nos referimos, os cavaleiros da Ordem já haviam abandonado as suas históricas fortalezas, mas ainda permaneciam de pé as torres da larga muralha; ainda pareciam, como hoje, parcialmente cobertos de heras e campainhas brancas, os maciços arcos do claustro, as galerias ogivais que se estendiam pelo seu pátio, onde o vento soprava com um gemido, balançando a erva alta.

Nos pomares e jardins, cujos caminhos inexplorados por muitos anos pelos religiosos, a vegetação, abandonada a si mesma, exibia-se em toda a sua nobreza, sem receio de que a mão do homem a mutilasse, crendo-a bela.

A roseira brava trepava pelos troncos velhos das árvores, e as escuras alamedas de choupos, cujas copas se tocavam e se misturavam umas com as outras, estavam cobertas de erva, de cardos e de urtigas silvestres que brotavam no meio dos caminhos de areia e dos canteiros, perto de desmoronar; a arruda, flutuando ao vento como uma crista de pluma, e as campainhas azuis e brancas, balançando como um pêndulo sobre as suas longas hastes flexíveis, proclamavam a vitória da destruição e da ruína.

Era noite, uma noite de verão, quente, cheia de suaves fragrâncias e rumores, e uma lua branca no meio de um céu sereno e azul, brilhante e transparente.

Manrique, sentindo a sua imaginação num frenesi de poesia, depois de atravessar a ponte, onde se deteve um momento a contemplar a escura silhueta da cidade que se destacava no fundo de nuvens brancas e de algumas feridas de luz no horizonte, dirigiu-se para as desertas ruínas dos Templários.

A meia-noite estava a chegar. A lua, que vinha subindo lentamente, já estava no alto do céu quando, ao entrar numa alameda escura, que conduzia do claustro em ruínas à margem do Douro, Manrique deu um grito, um grito de luz que se afogou, uma estranha mistura de surpresa, medo e alegria.

No fundo da alameda, havia-se agitado uma coisa branca e negra que flutuou um momento e desapareceu na escuridão. A bainha do vestido de uma mulher, de uma mulher que havia atravessado o caminho e se escondido entre a folhagem, no mesmo instante em que o sonhador louco de quimeras impossíveis penetrava no jardim.

— Uma mulher desconhecida!... Neste sítio!... A esta hora! Esta, esta é a mulher que eu procuro! — exclamou Manrique, e a sua continuação foi lançada, rápida como uma flecha.

III. A Perseguição nos Jardins

Atingiu o ponto em que se havia perdido, entre os ramos grossos, a mulher misteriosa.

Havia desaparecido. Onde? Longe, muito longe, pensou, manchada por entre os troncos das árvores como um claro ou um branco que se movia.

— É ela, é ela, que tem asas nos pés e foge como a sombra! — disse, e correu atrás dela, desgarrando com as mãos as redes de hera estendidas como uma tapeçaria de árvore a árvore.

Chegou, rompendo o mato e as plantas parasitas, a uma espécie de clareira que iluminava o céu limpo... Não! Ah!... Por aqui, por aqui! — exclamou então.

— Ouço os seus passos sobre as folhas secas, e o farfalhar do seu vestido, que se arrasta pelo chão e corta os arbustos, e correu, e correu como um louco, para aqui e para ali, e não a via. Mas ainda soam os seus passos — murmurou de novo — creio que falou, sem dúvida, falou... O vento que suspira por entre os ramos, as folhas, que parecem orar em silêncio, impediram-me de ouvir o que disse, mas não há dúvida de que, ao passar, falou... falou... Qual será a língua? Não sei, mas é uma língua estrangeira...

E voltou a correr no seu seguimento, crendo-a, às vezes, pensando ouvi-la outras, e observando o movimento dos ramos por onde havia desaparecido, e imaginando na areia a marca indistinta dos seus pés; depois, firmemente convencido de que um perfume especial, que aspirava a intervalos regulares, era um perfume que pertencia à mulher que dele zombava, perdida entre a intrincada vegetação. Preocupação inútil!

Vagou por algumas horas de um lado para outro, fora de si, parando para escutar, e correndo com o maior cuidado sobre a erva, e numa carreira frenética e desesperada.

Movendo-se, movendo-se pelos enormes jardins que cobriam as margens do rio, chegou ao fim, ao pé das rochas, onde se ergue a igreja de San Saturio.

— Talvez, desta altura, possa orientar-me para continuar as minhas pesquisas neste labirinto confuso — disse, escalando de rocha em rocha, com a ajuda da sua adaga.

Chegou ao topo, de onde se descobria a cidade ao longe e uma grande parte do Douro, que se contorcia a seus pés, arrastando nas margens uma poderosa correnteza, escura e curvando-se entre a vegetação.

Manrique, uma vez no topo das rochas, fixou o olhar em redor, mas ao fixá-lo depois num ponto, não pôde reprimir uma blasfémia.

O luar cintilava espumante na esteira que deixava atrás de si um barco que se dirigia, remando, para a margem.

No barco, creu distinguir uma forma delgada e branca, uma mulher sem dúvida, a mulher que havia visto nos Templários, a mulher dos seus sonhos, a realização das suas maiores esperanças. Desceu pelas pedras com a agilidade de um veado, atirou fora o boné, cuja longa pena redonda o podia embaraçar na corrida, e, tirando a larga capa de veludo, dirigiu-se como um tiro para a ponte.

Pensava chegar à cidade antes que o barco tocasse na outra margem. Loucura! Quando Manrique chegou, ofegante e coberto de suor, à entrada, aqueles que haviam atravessado o Douro por San Saturio de Soria entravam por um dos portões da muralha, que naquela época corria para a margem do rio, em cujas águas se retratavam as suas torres pardas.

IV. A Busca em Soria

Apesar de não ter uma ténue esperança de alcançar aqueles que haviam entrado pela grade de San Saturio, o nosso herói não desesperou, sabendo que a cidade os poderia abrigar.

Com a ideia fixa na mente, entrou na povoação, dirigiu-se ao bairro de San Juan, e começou a vaguear pelas ruas ao acaso.

As ruas de Soria, então, eram e ainda são escuras e sinuosas. Um profundo silêncio reinava nelas, silêncio interrompido apenas, às vezes, pelo ladrar distante de um cão; às vezes, pelo som de uma porta que se fechava; agora, pelo relinchar de um cavalo que, pateando, tocava a corrente que o prendia à manjedoura nos estábulos subterrâneos.

Manrique, com o ouvido atento a estes sons da noite, que às vezes lhe pareciam os passos de alguém que dobrou o último canto de um beco deserto; às vezes, confundia com vozes de pessoas que falavam às suas costas e que a cada instante esperava ver, caminhou várias horas, rodando ao acaso de um lado para outro.

Finalmente, deteve-se ao pé de um casarão de pedra, escuro e antigo, e ao deter-se, os seus olhos brilharam com uma indescritível expressão de alegria.

Numa das altas janelas ogivais deste palácio, viu um raio de luz quente e suave, que, passando por umas cortinas de seda rosa-claro, se refletia na parede rachada e negra da casa fronteira.

— Sem dúvida, aqui mora a minha desconhecida — murmurou o jovem em silêncio, sem tirar os olhos da janela gótica — aqui vive... Ela passou pela grade de San Saturio... Pela grade de San Saturio vem a este bairro... Neste bairro há uma casa onde, depois da meia-noite, ainda há gente acordada... Quem vela? Quem, senão ela, que regressa das suas excursões noturnas, pode estar acordada a esta hora?... Não há mais, esta é a sua casa.

Nesta firme persuasão, e agitando na sua mente a imaginação mais louca e fantástica, esperou a madrugada em frente da janela gótica, da qual toda a noite não faltou a luz e que se abriu um momento.

Quando chegou o dia, as maciças portas de arco que davam entrada no casarão, e em cuja chave estavam esculpidas as armas do seu titular, rangeram fortemente nas suas dobradiças, com uma paragem longa e aguda.

Ver Manrique e dirigir-se à porta, tudo foi obra de um momento.

— Quem mora nesta casa? Como se chama? Onde está? A que veio a Soria? É casado? Responde, animal! — foi a saudação que, sacudindo-o violentamente pelo braço, dirigiu ao pobre escudeiro, que, depois de o analisar um bom espaço de tempo com os olhos assustados e estúpidos, respondeu, rompendo a voz com surpresa:

— Nesta casa mora o honrado Dom Alonso de Valdecuellos, alferes do nosso senhor, o rei, que, ferido na guerra contra os mouros, nesta cidade se restabelece da sua ferida.

— Mas que é da sua filha? — interrompeu o jovem impaciente. — E da sua filha, ou da sua irmã, ou da sua esposa, ou do que quer que seja?

— Não há mulher nenhuma com ele.

— Não tem nenhuma!... Pois quem dorme ali, naquela sala, onde toda a noite vi uma luz acesa?

— Não? Dorme o meu senhor Dom Alonso, que, como está doente, tem a sua lâmpada acesa até ao amanhecer.

De repente, um raio que caiu a seus pés não lhe causou mais surpresa do que lhe causaram aquelas palavras.

V. A Obsessão de Manrique

— Hei de encontrá-la, creio, e se a encontrar, estou certo de que saberei... Que? Isso é o que não posso dizer... mas hei de sabê-lo. O eco dos seus passos, ou uma palavra sua que volte a ouvir, a ponta do seu vestido, um instante de a tornar a ver, basta para me guiar.

Noite e dia ando a procurar, flutuando diante dos meus olhos as dobras do seu vestido diáfano e branco; noite e dia soa-me aqui, dentro da cabeça, o farfalhar do seu vestido, o som confuso das suas palavras ininteligíveis.

Dizer que?... Dizer que?... Ah, se eu pudesse saber o que disse, talvez... mas mesmo sem o saber, hei de encontrá-la..., hei de encontrá-la, diz-me o coração, e o meu coração nunca se engana.

A verdade é que já percorri todas as ruas de Soria em vão, passei noites e noites sob as estrelas, fiz-me poste de esquina, gastei mais de vinte dobrões de ouro em falar com damas e cavalheiros, a quem dei água benta em San Nicolás, num velho, envolto com tanta arte no seu manto de anascote, que me pareceu uma divindade, e à saída da Colegiada, uma noite de prece de madrugada, acompanhei como um tolo a liteira do arcediago, crendo que a ponta holandesa do seu traje era a da minha desconhecida; mas isso não importa..., hei de encontrá-la, e a glória de a possuir excederá, sem dúvida, o trabalho de a procurar.

Como serão os seus olhos?... Devem ser azuis, azuis e húmidos como o céu da noite; gosto tanto de olhos dessa cor... são tão expressivos, tão melancólicos, tão... Sim!... não há dúvida: devem ser azuis, é certo; e o seu cabelo, preto, muito preto e solto a flutuar... Creio tê-lo visto flutuar naquela noite, o par que o traje, e era negro... não me engano, era negro.

Como é bela, muito inclinada e de olhos azuis adormecidos, e de cabelos soltos, flutuando, escuros, uma mulher alta!... porque... ela é alta, alta e esbelta como os anjos das primeiras páginas da nossa basílica, cujo rosto oval se envolve num crepúsculo de sombras misteriosas de um dossel de granito!

A sua voz!... Ouvi a sua voz... e a sua voz é suave como o som do vento nas folhas dos álamos, e a sua marcha rítmica e majestosa como a cadência da música.

E essa mulher que é bela como a mais bela dos meus sonhos de adolescente, que pensa como eu penso, que ama o que eu amo, que odeia o que eu odeio, que é uma alma gémea do meu espírito, que é a consequência do meu ser, não há de sentir-se impelida a encontrar-me? Não há de amar-me como eu a amo, como eu te amo, com toda a força da minha vida, com todas as forças da minha alma?

Venha, venha de onde a vi a primeira e única vez que a vi... Quem sabe, caprichosa como eu, amiga da solidão e do mistério, como todas as almas sonhadoras, não tem o prazer de passear pelas ruínas, no silêncio da noite?

Dois meses haviam passado desde que o escudeiro de Dom Alonso de Valdecuellos desenganou o sonhador Manrique; dois meses durante os quais, cada vez que havia formado um castelo no ar, a realidade o havia desfeito numa nuvem; e dois meses durante os quais havia procurado em vão a mulher desconhecida, cujo absurdo amor crescia na sua alma, graças à sua imaginação ainda mais absurda, quando, ao atravessar, absorvido nessas ideias, a ponte que conduz aos Templários, o jovem se perdeu entre os intrincados caminhos das hortas.

VI. O Raio de Luar

A noite estava serena e bela, a lua brilhava em toda a sua plenitude no alto do céu, o vento suspirava com um som suave nas folhas das árvores.

Manrique dirigiu-se à Colegiada para ver o seu sítio e olhou através das maciças colunas das arcadas... Estava vazio.

Saiu, dirigiu os seus passos para a alameda escura que conduz ao Douro, e ainda não havia entrado nela, quando dos seus lábios escapou um grito de alegria.

Havia sido uma coisa flutuante por um momento e desaparecido no fundo da alameda, o traje branco, o traje branco da mulher dos seus sonhos, da mulher que ele amava como um louco.

Correu, correu atrás dela, chegou ao sítio onde ela havia desaparecido, mas ao chegar, deteve-se; os olhos assustados fixos no chão, permaneceu imóvel por um instante, um ligeiro tremor nervoso sacudiu os seus membros, um tremor que foi crescendo, crescendo, e que oferecia os sintomas de uma verdadeira convulsão, e prorrompeu, por último, numa gargalhada, numa gargalhada seca, alta, horrível.

Aquela coisa branca, ligeira, flutuante, voltou a brilhar a seus olhos, mas havia estado a seus pés um momento, não mais do que um instante.

Era um raio de luar, um raio de luar que penetrava a intervalos entre as copas verdes das árvores quando o vento movia os ramos.

Havia sido há alguns anos. Manrique, sentado numa cadeira ao lado da alta lareira gótica do castelo, imóvel, e com um olhar vago e inquieto como o de um idiota, não prestava atenção às carícias da mãe nem aos confortos dos seus servidores.

— És jovem, és belo — diziam-lhe. — Por que te consomes na solidão? Por que não procuras uma mulher que ames, e que amando-te te possa fazer feliz?

— Amor!... O amor é um raio de luar — murmurou o jovem.

— Por que não despertais da vossa letargia? — dizia um dos seus escudeiros. — Revesti-vos de ferro da cabeça aos pés, mandai o vosso pendão desdobrar-se ao ar com o de um rico-homem, e marchai para a guerra. Na guerra há glória.

— A glória!... A glória é um raio de luar.

— Quereis dizer uma balada, a última que fez Monsenhor Arnaldo, o trovador da Provença?

— Não! Não! — exclamou o jovem, sentando-se na sua cadeira com raiva. — Não quero nada... ou melhor, se quereis: quero que me deixeis em paz... Cantigas... mulheres... glória... felicidade... tudo vaidade! Fantasmas da nossa imaginação a quem vestimos como queremos, e a quem amamos e corremos atrás... Para quê?... Para quê? Para encontrar um raio de luar.

Manrique estava louco, ou pelo menos, todos o pensavam. Eu, pelo contrário, creio que o que ele fez foi recuperar o juízo.

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