Metabolismo do Ferro e Porfirinas: Funções, Regulação e Doenças
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O ferro é um oligoelemento (i.e., elemento químico presente em traços) cuja carência promove, a curto ou longo prazo, alterações fisiológicas essenciais à vida, saúde e reprodução.
A distribuição de ferro no organismo inclui:
- Hemoglobina: 67,0%
- Ferro de armazenamento (ferritina e hemossiderina): 27,0% (aproximadamente 1.000 mg)
- Mioglobina: 3,5% (aproximadamente 130 mg)
Importância do Ferro
- Participa da síntese de novas células, aminoácidos, hormônios e neurotransmissores.
- Cofator em reações de oxi-redução (Fe2+ e Fe3+).
- Componente de compostos essenciais:
- Contendo heme:
- Hemoglobina (Hb) - transporte de O2
- Mioglobina (Mb) - armazenamento de O2
- Citocromos microssomais - metabolismo de xenobióticos
- Citocromos mitocondriais - cadeia de transporte de elétrons
- Catalase - decomposição de H2O2
- Peroxidase - oxidação de vários substratos pelo H2O2
- Triptofano pirrolase, prostaglandina sintase, guanilato ciclase, NO sintase.
- Ferredoxinas: proteínas Fe-S envolvidas em transporte de elétrons.
- Contendo heme:
A maior parte do ferro necessário ao organismo é suprida pela reutilização do ferro derivado das hemeproteínas (ciclo interno do ferro). Por dia, recirculam 30-40 mg de Fe, sendo 80% para eritropoiese.
Absorção de Ferro
A absorção usual (5% do oferecido na dieta) é igual à perda e requisição, ou seja, a absorção de ferro aumenta em resposta a baixo estoque de ferro.
- Ferro Hêmico: ferro constituinte do grupamento heme (fontes de carne).
- Ferro Não Hêmico: ferro presente em outras formas diferentes do heme (plantas e carne). A pouca absorção do ferro não hêmico é devida à sua insolubilidade.
A absorção das duas formas de ferro (hêmico e não hêmico) utiliza sistemas metabólicos distintos. A absorção de íon ferroso (Fe2+) é mais eficaz do que a de íon férrico (Fe3+).
Fatores que Aumentam a Absorção de Ferro Não Hêmico:
- Fator MFP (carnes, aves e peixes)
- Vitamina C (aumenta em até 30%)
- Ácidos cítrico e lático
- HCl no estômago
- Açúcares (inclusive vinho)
Inibição da Absorção de Ferro Não Hêmico:
- Fitatos e fibras (grãos e vegetais)
- Oxalatos (no espinafre)
- Cálcio e fósforo no leite
- EDTA (aditivo de alimento)
- Ácido tânico (chá e café)
Mecanismo e Controle da Absorção
A absorção ocorre via processo ativo ao longo de todo o intestino delgado (particularmente no duodeno e jejuno proximal). A absorção de ferro é rigorosamente controlada, pois não existe um processo fisiológico para excreção de ferro do organismo.
Proteínas de Transporte e Armazenamento de Ferro
- Albumina: Liga heme férrico (hemina), podendo transferi-lo à hemopexina.
- Haptoglobina: Glicoproteína plasmática polimórfica (~90 kDa), sintetizada no fígado. Transporta Hb, originada da hemólise, até o SRE (Sistema Retículo-Endotelial).
- Hemopexina: Beta-1 globulina plasmática. Transporta heme, originado da hemólise, até o SRE.
- Lactoferrina: Glicoproteína (80 kDa) do leite, homóloga à transferrina e que nunca fica saturada de ferro. Encontrada em secreções exócrinas de mamíferos e liberada de grânulos de neutrófilos durante inflamação. Possui papel nutricional e de defesa (atividades antibacteriana, antiviral, antifúngica, anti-inflamatória, antioxidante e imunomoduladora).
- Transferrina (Tf): Beta-1 globulina plasmática polimórfica (76 kDa), sintetizada no fígado, que apresenta dois sítios de ligação para Fe3+. Transporta ~3 mg Fe3+/dia (~0,1% do ferro corporal) no sangue, entregando-o a todas as células. Em condições normais, apenas 30% dos seus sítios para Fe estão ocupados. 80% do transporte desse Fe é para sustentar a eritropoiese.
- Receptor de Transferrina (TfR): Proteína transmembrana homodimérica (180 kDa) que liga preferencialmente transferrina diférrica e está presente em todas as células. O complexo ferro-transferrina-receptor é internalizado por endocitose absortiva, sendo o ferro armazenado e a transferrina devolvida para a circulação. Nas células eritroides, o Fe migra para a mitocôndria. A transferrina pode sofrer mais de 10 reciclagens para a membrana por dia. Nas células não eritroides, o Fe é armazenado sob a forma de ferritina e/ou hemossiderina.
- Ferritina: Proteína de armazenamento de ferro encontrada em bactérias, células vegetais e animais. No ser humano, está presente em quase todas as células do corpo e pode ser encontrada em baixas concentrações no plasma. A ferritina é constituída de apoferritina (porção proteica sem o ferro) e ferro (~30%). A apoferritina é formada por 24 subunidades polipeptídicas (450 kDa) e pode abrigar até 4.500 átomos de Fe, sob a forma de fosfato de óxido férrico hidratado.
- Hemossiderina: Agrupamento de ferritinas (i.e., apoferritinas contendo ferro).
Regulação da Absorção Intestinal e Captação de Ferro
Em condições de deficiência de ferro circulante, as células da mucosa intestinal não apresentam apoferritina no seu interior, permitindo que todo o Fe absorvido seja transferido ao plasma. No fígado, quando há aumento de expressão de receptores de transferrina, a produção de ferritina cai.
Quando há muito ferro circulante, as células da mucosa intestinal aumentam a síntese de apoferritina para sequestrá-lo e impedir que ele seja transportado ao plasma. Com a esfoliação e renovação destas células, seu conteúdo é lançado no lúmen intestinal e perdido com as fezes.
O metabolismo de ferro é regulado de duas maneiras:
1. Regulação Pós-Transcricional (Via IRPs e IREs)
Em altas concentrações intracelulares de Fe, este propicia a conformação das IRPs (Proteínas Reguladoras de Ferro) com cluster de Fe-S (ISC). Nesta conformação, as IRPs não podem se ligar aos IREs (Elementos de Resposta ao Ferro) de mRNAs de diferentes proteínas envolvidas no metabolismo do Fe. Em baixas concentrações intracelulares de Fe, as IRPs predominantes não apresentam o cluster de ferro e passam a poder se ligar aos IREs de mRNAs de diferentes proteínas envolvidas no metabolismo do Fe.
Tanto a não ligação (IRPs com cluster de Fe) quanto a ligação (IRP sem cluster de Fe) controlam distintamente a tradução de diferentes mRNAs em proteínas do metabolismo do Fe, quer seja:
- Liberando sua tradução.
- Impedindo sua tradução.
- Variando a estabilidade do mRNA (impedindo ou aumentando a hidrólise por RNAses).
Em células com carência de Fe, as IRPs se ligam com alta afinidade aos IREs. As interações IRP-IRE estabilizam o mRNA (impedem a ação de RNAses) do receptor de transferrina (TfR1) e impõem um bloqueio estérico na tradução do mRNA de ferritina. Como resultado, o aumento dos níveis de TfR1 na membrana celular estimula a captura de Fe a partir da transferrina (Tf) do plasma para compensar a deficiência de Fe intracelular. Simultaneamente, a inibição da síntese de novo de ferritina leva à queda intracelular dessa proteína, já que nessa condição (carência de ferro) a sua abundância se torna desnecessária. As interações IRP-IRE também estabilizam o mRNA do transportador de metais divalentes (DMT1) para que mais Fe seja absorvido pelo intestino.
Inversamente, em células com alto conteúdo intracelular de Fe, as IRPs se tornam impróprias (pela presença de ISC) para a ligação aos IREs, permitindo a degradação do mRNA do TfR1 e DMT1 (pelas RNAses) e liberando a tradução do mRNA de ferritina e permitindo a tradução do mRNA de ferroportina.
2. Inibição da Ferroportina pela Hepcidina
Ferroportina
É uma proteína transmembrana que transporta ferro do meio intracelular para fora da célula. É encontrada na superfície de células que armazenam ou transportam ferro, incluindo: enterócitos, hepatócitos e macrófagos (SRE).
É inibida pela hepcidina, que ao se ligar à ferroportina promove sua internalização e degradação por proteassomas. Isto resulta na retenção de ferro no interior da célula e redução dos níveis plasmáticos de ferro.
Mutações no gene da ferroportina causam uma forma autossômica dominante de sobrecarga de ferro, conhecida como hemocromatose tipo IV ou doença da ferroportina.
Hepcidina
Hormônio peptídico, sintetizado no fígado, que possivelmente é o principal regulador da homeostase do ferro em seres humanos e outros mamíferos (regula a liberação de ferro no organismo).
A hepcidina inibe diretamente a ferroportina, impedindo, assim, que os enterócitos secretem para o sistema hepático portal, reduzindo, portanto, a absorção intestinal e captação de ferro. A liberação de ferro dos macrófagos é também inibida pela hepcidina. Portanto, a hepcidina mantém a homeostase do ferro.
Várias mutações na hepcidina resultam em hemocromatose juvenil, embora a maioria dos casos seja devido a mutações na hemojuvelina, um regulador da produção de hepcidina.
Na hemocromatose juvenil, observa-se aumento da saturação de transferrina e ferritina. Os pacientes com hemocromatose juvenil, em geral, apresentam cardiopatia, hipogonadismo e doença hepática.
A hepcidina é liberada pelo fígado em caso de inflamação e infecção. Este peptídio tem duas funções importantes que exercem efeito sobre o status de ferro: diminui a absorção de ferro através do trato gastrointestinal e diminui a liberação de ferro pelo sistema retículo-endotelial. Dessa forma, a hepcidina tem um impacto negativo sobre o status global de ferro.
Testes Laboratoriais: TIBC e Saturação de Transferrina
TIBC (Capacidade de Ligação de Ferro Total): Teste laboratorial que mede a capacidade do sangue de ligar Fe à Tf, ou seja, mede a quantidade de Tf que estaria presente no plasma caso toda ela estivesse ligada ao Fe.
Percentual de Saturação da Tf:
% Saturação da Tf = (Ferro Sérico / TIBC) x 100
Valores Normais:
- Ferro Sérico: 60-170 µg/dL
- TIBC: 240-450 µg/dL
- Saturação de Tf: 20-50%
Condição | Ferro Sérico | Transferrina e TIBC | % de Saturação de Tf |
---|---|---|---|
Anemia Ferropriva | Baixo | Alto (pouco Fe disponível, maior produção de Tf) | Baixo (Fe insuficiente) |
Anemia por Doença Crônica | Baixo | Baixo (produção menor de Tf e maior de ferritina, de forma que o Fe não esteja disponível para os patógenos) | Normal |
Gravidez | Normal | Alto (aumento de produção de Tf) | Baixo (existe excesso de Tf com níveis normais de Fe) |
Deficiência de Ferro
Grupos de Alto Risco: Mulheres com recém-natos, mulheres grávidas, bebês, crianças e adolescentes, principalmente em mulheres grávidas e crianças de grupos de baixa renda.
A deficiência de Fe ocorre em estágios e eventualmente leva à anemia por deficiência de Ferro:
- Estoque diminui (medida de ferritina sérica).
- Diminuição do transporte (ferro sérico cai, transferrina aumenta). Transferrina maior e ferro baixo indicam níveis de deficiência.
- Carência de ferro limita produção de Hb.
- Protoporfirina do eritrócito começa a se acumular (precursor da Hb).
- Hb e hematócrito diminuem.
- Carência grave.
- Hb baixa (células do sangue são pequenas e pálidas e não podem carregar oxigênio suficiente).
- Metabolismo energético falha.
A falta grave de estoque de Fe resulta em anemia microcítica hipocrômica, caracterizada por:
- Microcitose: hemácias pequenas.
- Hipocromia: pouca Hb nas hemácias.
- Poiquilocitose: formas bizarras.
- Anisocitose: tamanhos variáveis.
Sintomas: Fadiga, fraqueza, dores de cabeça, baixa resistência ao frio, palidez, falta de apetite, palpitação, tontura, resistência reduzida à infecção, pele coçando.
A deficiência pode ser sinalizada pelo comportamento antes da anemia (criança irrequieta e letargia em adultos).
Deficiência de Ferro e Geofagia (Pica)
- Geofagia: desejo por substâncias não comestíveis (gelo, argila, cola).
Hemocromatose Hereditária
Doença caracterizada pelo aumento da absorção de ferro e sua deposição em vários órgãos. O conteúdo total de Fe pode aumentar até 10 vezes.
Resultados/Sintomas:
- Fadiga crônica
- Pigmentação da pele
- Diabetes mellitus
- Hipogonadismo
- Cirrose hepática
A transferrina se encontra saturada e a ferritina do soro aumenta. A sobrecarga é geralmente tratada por venissecção repetida.
Outros Sinais:
- Hiperpigmentação da pele
- Artropatia
- Hepatomegalia
- Cirrose
Porfirinas
Compostos cíclicos formados pela ligação de quatro anéis do pirrol através de pontes de meteno.
Metaloporfirinas
Uma propriedade característica das porfirinas é a formação de complexos com íons metálicos, que se ligam ao nitrogênio dos anéis pirrólicos.
Importância Biológica das Porfirinas
- O heme é sintetizado a partir de uma porfirina.
- As hemoproteínas estão envolvidas no transporte de oxigênio (hemoglobina), transporte de elétrons (citocromo c), metabolismo de drogas (citocromo P450), etc.
- Anormalidades na via de biossíntese do heme originam doenças chamadas porfirias.
- A degradação do anel porfirínico do heme origina os pigmentos biliares, que são excretados via bile nas fezes e urina.
- Anormalidades na produção ou excreção de produtos de biodegradação do heme originam doenças chamadas icterícias.
Estrutura das Porfirinas
As porfirinas encontradas na natureza são compostos nos quais as várias cadeias laterais substituem os oito átomos de hidrogênio numerados do núcleo das porfirinas.
- As porfirinas tipo I apresentam substituição simétrica entre todos os anéis pirrólicos.
- Nas porfirinas tipo III, a disposição dos substituintes é assimétrica em dois anéis pirrólicos opostos (II e IV).
Uroporfirinas: Foram primeiramente encontradas na urina, mas não estão restritas à urina.
Coproporfirinas: Foram primeiramente encontradas nas fezes, mas são encontradas também na urina.
Uma porfirina de grande importância é a Protoporfirina Tipo III, que dá origem ao heme, após adição de Fe2+.
Regulação da Síntese do Heme
Células Eritroides: Síntese de ~85% dos grupos heme
- Heme - estimula a síntese de proteínas nos reticulócitos.
- Ferroquelatase e PBG desaminase - controlam a biossíntese de heme.
- Complexos lipídio-ferro solúveis - estimulam a biossíntese de heme in vitro.
Fígado: Heme - grupo prostético do citocromo P450
- Heme - regulador negativo da síntese de ALA-sintase (atua através do aporepressor).
- Ausência de heme - aumenta a taxa de síntese.
- Presença de heme - diminui a taxa de síntese.
- Inibição do transporte de ALA-sintase do citosol para a mitocôndria pelo heme.
- Inibição por feedback pelo heme.
Porfirias
Anomalias hereditárias ou adquiridas da síntese do heme. O comprometimento de uma das várias enzimas que participam da síntese de heme promove o acúmulo de precursores da porfirina, resultando em excreção aumentada de porfirinas ou de seus precursores.
Tipos de Porfirias:
- Porfirias Hereditárias
- Porfirias Eritropoiéticas
- Porfirias Hepáticas
Os níveis dos metabólitos que causam lesão variam nos diferentes órgãos ou células.
Recomendações para Pacientes com Porfiria:
- Evitar qualquer anestésico ou droga (induz citocromo P450 e aumenta a síntese de heme).
- Ingerir mais alimentos ricos em carboidratos (diminui a indução de ALA-sintase).
- Administrar hematina - hidróxido de heme (reprime a ALA-sintase).
- Beta-caroteno (diminui radicais livres e fotossensibilidade).