Modernidade Líquida: Reflexões sobre Medo e Decadência Social

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Novas formas de censura coexistem – da maneira mais estranha – com a linguagem sádica e canibalesca encontrada na internet e que corre solta nas orgias verbais do ódio sem face, nas cloacas virtuais em que se defeca sobre os outros e nas demonstrações incomparáveis de insensibilidade humana (em especial nos comentários anônimos). Essa é a cegueira moral – voluntariamente escolhida e imposta ou aceita com resignação – de uma época que, mais que de qualquer outra coisa, necessita de rapidez e acuidade na compreensão e no sentimento. Para que possamos recuperar nossa sagacidade em tempos sombrios, é preciso devolver a dignidade, da mesma forma que a ideia da inescrutabilidade essencial dos seres humanos, aos grandes homens e mulheres do mundo.

Eu não atribuiria o fenômeno da “demonização do mal” à peculiaridade de ser “europeu oriental” – condenado a viver durante os últimos séculos no limen que separa e vincula um “centro civilizador”, formado pela Europa Ocidental, com a “ruptura moderna”, de uma vasta hinterlândia, vista e vivenciada por justaposição como “incivilizada” e “carente de civilização” (subdesenvolvida, atrasada, deixada para trás). O mal precisa ser demonizado enquanto as origens da bondade (graça, redenção, salvação) continuarem a ser deificadas como o foram em todas as crenças monoteístas: a figura do “diabo” representa a incompatibilidade da presença do mal no mundo em que se vive e sobrevive com a figura do bem amoroso: um pai e guardião da humanidade benevolente e misericordioso, a fonte de tudo que é bom – a premissa fundamental de todo monoteísmo. A perene questão unde malum?, de onde vem o mal, juntamente com a tentação de apontar, revelar e retratar uma fonte da malevolência codinominada “diabo”, tem atormentado a mente de teólogos, filósofos e grande parte de sua clientela, ansiando há mais de dois milênios por uma Weltanschauung significativa e verídica.

Ao contrário de seus descendentes líquidos modernos um século depois, aos contemporâneos de Henry Ford Sr., J.P. Morgan ou John D. Rockefeller era negada a principal “arma contra a insegurança”, e eles se viam incapazes de reciclar o proletariado num precariado. A possibilidade de transferir sua riqueza para outros locais – lugares cheios de pessoas prontas a sofrer sem queixas qualquer regime fabril, ainda que cruel, em troca de qualquer salário de subsistência, ainda que miserável – não estava à sua disposição. Tal como seu corpo fabril, seu capital estava “preso” ao lugar, afundado num maquinário pesado e volumoso, trancado dentro das paredes da fábrica. O fato de a dependência, portanto, ser mútua, e de os dois lados serem forçados a permanecer juntos por um longo tempo, era um segredo de polichinelo, do qual os dois lados tinham profunda consciência. Confrontados por essa interdependência estrita com sua longa expectativa de vida, ambos os lados tiveram de chegar mais cedo ou mais tarde à conclusão de que era de seu interesse desenvolver, negociar e observar um modus vivendi – um modo de coexistência que incluía a aceitação voluntária de inevitáveis limites à sua liberdade de manobra, até os quais o outro lado do conflito de interesses devia ser pressionado.

A exclusão estava fora desses limites, da mesma forma que a indiferença à miséria e a negação de direitos. A única alternativa ao alcance de Henry Ford e das crescentes fileiras de seus admiradores, seguidores e imitadores seria equivalente a cortar o galho em que se encontravam a contragosto empoleirados, ao qual estavam ligados tão seguramente quanto seus trabalhadores a suas bancadas, e dos quais não podiam passar para lugares mais confortáveis e convidativos. Transgredir os limites estabelecidos pela interdependência significaria a destruição das fontes de seu próprio enriquecimento; ou exaurir depressa a fertilidade do solo sobre o qual suas riquezas haviam crescido e, ao que se esperava, continuariam a crescer, ano após ano, em direção ao futuro – talvez eternamente. Em suma, havia limites à desigualdade que o capital podia suportar. Ambos os lados do conflito haviam investido em evitar que a desigualdade saísse de controle. E cada lado tinha um interesse investido em manter o outro no jogo.

Mais que qualquer coisa, o totalitarismo líquido manifesta-se no padrão chinês de modernidade, em oposição ao padrão ocidental, com sua fórmula de capitalismo sem democracia ou livre mercado sem liberdade política. O divórcio entre poder e política que você descreve desenvolveu uma versão específica chinesa: o poder financeiro pode existir e prosperar lá, desde que não se associe ao poder político nem se sobreponha a ele. Fique rico, mas permaneça longe da política. A política ideológica é uma ficção na China, desde que Mao Tsé-Tung foi traído mil vezes por seu partido, que deixou de ser uma cidadela comunista e se transformou num grupo de elite gerencial. É impossível trair mais a Revolução Cultural chinesa e o comunismo que os modernizadores chineses sob o disfarce do toque mágico da modernidade, com a ajuda do livre mercado e da racionalidade instrumental.

Exércitos regulares raras vezes se encontram face a face; armas pouco chegam a ser descartadas. Nas atividades terroristas, tanto quanto na “guerra ao terrorismo” (a distinção terminológica reflete a nova assimetria de hostilidades), a evitação total do confronto direto com o inimigo é buscada por ambos os lados e com crescente sucesso. Dos dois lados da linha de frente desenvolvem-se duas estratégias e táticas de guerra em tudo diferentes. Cada lado tem suas próprias limitações – mas também suas vantagens, em relação às quais o outro lado não possui respostas eficazes. Portanto, as atuais hostilidades que substituem o combate de outrora consistem em duas ações unilaterais, flagrantemente assimétricas, pretendendo tornar nula e inválida a própria possibilidade de simetria.

Nossa época é caracterizada pelo medo. Desenvolvemos uma cultura do medo que está se tornando cada vez mais poderosa e global. Nossa era de autorrevelação, fixada no sensacionalismo barato, nos escândalos políticos, nos reality shows e em outras formas de autoexposição em troca da atenção do público e da fama, valoriza incomparavelmente mais o pânico moral e os cenários apocalípticos que a abordagem equilibrada, a ironia leve ou a modéstia.

Por trás dessa tendência está o medo esmagador de desmoronar ou de ser quem se é; o medo da desimportância; de desvanecer no ar sem deixar vestígios de visibilidade e presença; de estar distante do mundo da TV e da mídia, o que equivale a se tornar uma não entidade ou ao fim da própria existência. Houve um tempo em que os filósofos fatalistas e pessimistas, com todas as suas previsões quanto à ruína final da cultura europeia ou ao colapso do mundo ocidental, pareciam uma voz do século XX com suas trágicas e sombrias experiências da Primeira Guerra Mundial, da Grande Depressão nos Estados Unidos, da ascensão de ditaduras totalitárias e outras formas de barbárie moderna.

O paradoxo é que agora é quase de bom-tom prever o colapso da Europa – financeiro, político e cultural. Os visigodos decerto estão chegando, de uma forma ou de outra: migrantes e refugiados da África, da Ásia e do Leste Europeu privam a Europa de sua identidade historicamente constituída, enquanto muçulmanos apresentam uma ameaça direta ao legado do cristianismo e a nossos direitos e liberdades fundamentais. A marcha fúnebre da Europa tornou-se um lugar-comum nos últimos cinco anos, mais ou menos.

Vejamos em primeiro lugar os usos comerciais do medo. Sabe-se muito bem que a lógica de marketing de uma economia “desenvolvida” (compulsiva, obsessiva e viciosamente na esfera social) não é governada pelo compromisso de satisfazer necessidades existentes, mas de expandir as necessidades até o nível da oferta e suplementá-las com desejos só de longe relacionados a necessidades, embora correlacionados às técnicas de tentação e sedução do marketing. Este dedica-se à descoberta ou à invenção de perguntas cujas respostas os produtos recém-apresentados parecem oferecer, e então a induzir o maior número possível de potenciais clientes a fazer essa pergunta com frequência cada vez maior.

Em outras palavras, pesquisas de opinião pública, questionários, enquetes por telefone e verificações de audiência obsessivamente conduzidas são aquilo que cria autoridade, elas próprias constituindo uma autoridade anônima, difusa, que os engenheiros da imagem e da opinião pública, os imagólogos, como Milan Kundera os chama, estão prontos a encarnar na pessoa de algum herói do momento. Como e de que outra forma a autoridade poderia ser conformada numa sociedade que perdeu suas metas, sua visão, a direção de sua política social e os critérios de avaliação?

Menos pessoas terão ouvido o inteligente comentário dessa ideia feito por Susan Sontag: “Eu invejo os paranoicos. Eles realmente acham que as pessoas estão prestando atenção neles.” Se o “conspiracionismo” é uma projeção da paranoia, pode ser que ele exista para nos garantir que não sejamos objetos totalmente desconsiderados num processo cego. Se Marilyn foi assassinada, então ela não morreu, como tememos e observamos, de modo solitário e inglório. Uma catástrofe ocorreu, mas não a catástrofe maior que está à espera de todos nós.

Talvez uma lógica do rápido consumo e da célere reação tenha permitido a formação dos critérios de eficiência de fábricas, oficinas, empresas e lojas da era industrial. Transferida, porém, para as universidades e instituições de pesquisa da era pós-industrial e da informação, essa lógica se torna grotesca e absurda. É possível atingir resultados rápidos em sistemas simples ou trabalhando na educação popular. Mas uma educação realmente boa, projetos fundamentais e ciências humanas e sociais que mudam o mundo das ideias não podem, ao contrário de aplicações da tecnologia ou da teoria popular, se desenvolver rapidamente e se dedicar ao consumo fácil só porque sua preocupação básica é com escolas de pensamento e com processos de autocorreção que não podem ser consumados em um ou dois dias.

A capitalização das universidades e o modelo literalmente libertário de sua gestão, imposto a partir de cima pela burocracia do Estado, são algo tão grotesco que os grandes liberais – acima de tudo os economistas e pensadores políticos liberais – nunca sonharam com isso. São capitalismo acadêmico sem liberdade, uma espécie de tirania tecnocrática e burocracia implementada em nome da liberdade e do progresso. Ao mesmo tempo, é um simulacro tecnocrático de livre mercado, em que a competição se produz a partir de critérios escolhidos de modo tão tendencioso que certas instituições favorecidas têm a garantia de vencer.

Num mundo como o nosso, somos compelidos a levar a vida passo a passo, como ela se apresenta, esperando que cada avanço seja diferente do anterior e exija novos conhecimentos e habilidades. Uma amiga minha, imigrante oriunda da Polônia e que mora num país da União Europeia, altamente inteligente, educada e criativa, com o domínio total de sete idiomas, que passaria com facilidade na maioria dos testes e entrevistas de emprego, queixou-se numa carta que “o mercado de trabalho é frágil como a gaze e quebradiço como a porcelana”. Por dois anos ela trabalhou como tradutora e consultora jurídica freelance, plenamente exposta aos altos e baixos comuns às sinas do mercado. Mãe solteira, ansiava contudo por uma renda mais regular, e optou por um emprego fixo, com salário mensal. Durante um ano e meio trabalhou para uma empresa instruindo empresários promissores sobre as complexidades jurídicas da União Europeia. Mas como os novos negócios audaciosos demorassem a aparecer, a empresa logo foi à falência. Por mais um ano e meio ela trabalhou para o Ministério da Agricultura, dirigindo uma seção dedicada à política de contatos com os países bálticos recém-independentes. Veio a eleição, e a nova coalizão governamental decidiu “terceirizar” essa preocupação para a iniciativa privada, e assim resolveu fechar o departamento. O emprego seguinte durou somente meio ano: o conselho de Estado para a igualdade étnica seguiu o padrão governamental de lavar as mãos e foi declarado redundante.

Estabelecer algum tipo de conexão com seu porto acadêmico temporário é impossível, pois esses intelectuais sabem que dentro em breve estarão de novo na estrada. Quanto mais fortes forem os laços com uma nova posição, ou mais profundas as amizades que alguém se permita formar, mais difícil será ir em frente, mais a experiência se guardará na memória e mais dolorosa se tornará. Essa espécie de estilo de vida não deixa espaço para compromissos de longo prazo nem para desenvolver sentimentos de pertença a uma comunidade determinada.

Antes da Segunda Guerra Mundial, teoria semelhante do declínio orgânico de uma cultura e interpretação morfológica da história foram elaboradas pelo extremamente talentoso jornalista, artista de cabaré, historiador e filósofo austríaco Egon Friedell. Tal como outros judeus da Áustria, da Alemanha e, na verdade, de toda a Europa, ele era incapaz de mudar seu destino ou trapacear com ele. Sua percepção da decadência da Europa, que ele chamou de crise da alma europeia, foi apenas um prelúdio de sua própria tragédia pessoal. Quando os nazistas foram prendê-lo, Egon Friedell tirou a própria vida pulando pela janela.

Dilemas e Desafios Líquidos

As missões de reconhecimento continuam a vir de muitos setores da sociedade, em particular do “precariado” (nome derivado do conceito de “precariedade”), um estrato em rápido crescimento, que assimila e absorve os remanescentes do antigo proletariado e parcelas cada vez mais amplas das classes médias, “unidos” apenas pela sensação de uma existência vivida sobre areias movediças ou ao pé de um vulcão.

Como esses custos têm de ser cobertos pela capacidade financeira do lado que está sob ataque, eles podem muito bem, a longo prazo, se transformar na arma mais eficaz e devastadora dos terroristas (imagine só quanto custa espionar, detectar e confiscar milhões de garrafas de água, dia após dia, em milhares de aeroportos de todo o mundo, só porque alguém, em algum lugar, em algum momento, foi apanhado montando, ou era suspeito de montar, uma bomba artesanal ou caseira, misturando pequenas quantidades de líquidos). Algumas pessoas consideram que o colapso da União Soviética foi desencadeado por Reagan quando este envolveu Gorbachev numa corrida armamentista que a economia daquele país não podia enfrentar sem ir à bancarrota. Observando-se a dívida federal americana, já exorbitante e ainda em crescimento rápido, somos perdoados por indagar se Bin Laden e seus sucessores não pegaram a dica e aprenderam a lição esforçando-se por repetir o feito de Reagan.

O tratamento dos estrangeiros como simples “problema de segurança” é subjacente a uma das causas do verdadeiro “moto-perpétuo” nos padrões de interação humana. A desconfiança em relação aos estrangeiros e a tendência a estereotipar todos eles, ou algumas categorias selecionadas, como bombas-relógios prontas a explodir crescem em intensidade a partir de uma lógica e de um ímpeto próprios, sem necessidade de apresentar novas provas de sua adequação nem estímulos adicionais provenientes de atos de hostilidade por parte do pretenso adversário (ou seja, eles mesmos produzem provas e estímulos em profusão). Em geral, o principal efeito da obsessão com a segurança é o rápido aumento (e não a redução) da sensação de insegurança, com todos os acessórios de pânico, ansiedade, hostilidade, agressão, mais o esvaziamento ou supressão dos impulsos morais.

O dilema da apatia política, a perda do interesse e do compromisso políticos (“não há mais salvação pela sociedade”, como Peter Drucker proclamou, numa expressão famosa) e uma ampla retirada da população no que se refere a participar da política institucionalizada são testemunhos do esfacelamento dos alicerces remanescentes do poder de Estado. Suspendendo a antiga interferência programática sobre a incerteza e insegurança existenciais produzidas pelo mercado, e proclamando, pelo contrário, que eliminar uma a uma as restrições residuais a atividades lucrativas é a principal tarefa de todo poder político que cuide do bem-estar de seus súditos, o Estado contemporâneo precisa procurar outras variedades, não econômicas, de vulnerabilidade e incerteza para sustentar sua legitimidade. Essa alternativa parece se situar (em primeiro lugar e de modo mais espetacular, embora absolutamente não exclusivo, no caso do governo dos Estados Unidos) na questão da segurança pessoal: os medos atuais ou previstos, abertos ou ocultos, reais ou supostos, de ameaças aos corpos, propriedades e hábitats humanos, quer venham de dietas ou estilos de vida pandêmicos e nocivos à saúde, quer de atividades criminosas, de condutas antissociais da “subclasse” ou, mais recentemente, do terrorismo global.

O hiato crescente entre a consciência pública do que precisa ser (leia-se, deseja-se que seja) interrompido, abandonado ou removido e a consciência pública do que precisa ser (leia-se, deseja-se que seja) colocado em seu lugar tem sido uma das características mais notórias do “Ano das pessoas em movimento”. Outra característica importante foi o enfraquecimento de um poder de protesto unificador, socialmente integrador, voltado contra o impacto divisionário, socialmente desintegrador, da falta de eficácia dos projetos políticos disponíveis.

Essa tendência em geral é explicada culpando-se o crescimento dos tabloides e a comercialização do jornalismo como um todo. Qualquer que seja o caso, esse argumento não é convincente. Em muitos países, a imprensa e a televisão atravessam um processo de comercialização acelerada. Mas nem na Inglaterra, onde a imprensa e a televisão também são afetadas pela comercialização acelerada e incontrolável, nem nos países da Escandinávia ou do grupo Benelux se pode ver tal abundância de cenas violentas. Para não mencionar que mesmo os tabloides desses países hesitariam em apresentar o tipo de informação que “alimenta”

ado por ele, via todos esses morfologistas da história e da cultura que acreditavam na teoria do declínio e da decadência orgânicos da cultura como mestres da sociologia totalitária. Outros morfologistas da cultura ficaram muito menos famosos por seus insights e sugestões políticas. Em vez disso se afirmaram como intérpretes poéticos da cultura e da crise da alma europeia. Aqui poderíamos mencionar o brilhante pensador austríaco Egon Friedell e o filósofo da cultura romeno Lucian Blaga.

Um contemporâneo seu foi o africanista Leo Frobenius, que enunciou a ideia da dinâmica natural, espontânea, autossuficiente e racionalmente inexplicável de uma cultura, criou a teoria do declínio orgânico da cultura, acreditando que todas elas têm uma substância ou alma misteriosa da qual emergem suas formas singulares. Ele chamou essa alma mística da cultura de paideuma.

A esse respeito, Bauman não está distante do pensamento de Hannah Arendt – em especial quando ela, no polêmico estudo sobre Eichmann em Jerusalém e a banalidade do mal, revelou sua decepção com o mal do novo mundo. Todos esperam ver um monstro ou uma criatura do inferno, mas na verdade veem um banal burocrata da decadência social cuja personalidade e atividade são testemunhos de uma extraordinária normalidade e até de um elevado senso de dever moral. Não surpreende que Bauman tenha interpretado o Holocausto não como uma orgia de monstros e demônios, mas como um conjunto de condições horríveis, sob as quais os membros de uma nação fariam as mesmas coisas que os alemães e outras nações fizeram – nações que tiveram a oportunidade de interpretar rápida e simplesmente seus próprios sofrimentos e os fatos em que se envolveram.

Quanto à “perda do anonimato” por cortesia da internet, … submetemos à matança nossos direitos de privacidade por vontade própria. Ou talvez apenas consintamos em perder a privacidade como preço razoável pelas maravilhas oferecidas em troca. Ou talvez, ainda, a pressão no sentido de levar nossa autonomia pessoal para o matadouro seja tão poderosa, tão próxima à condição de um rebanho de ovelhas, que só uns poucos excepcionalmente rebeldes, corajosos, combativos e resolutos estejam preparados para a tentativa séria de resistir.

De uma forma ou de outra, contudo, nos é oferecida, ao menos nominalmente, uma escolha, assim como ao menos uma aparência de contrato de duas vias e o direito formal de protestar e processar se ele for rompido, algo jamais assegurado no caso dos drones. Da mesma forma, uma vez dentro, tornamo-nos reféns do destino. Como observa Brian Stelter, “a inteligência coletiva dos 2 bilhões de usuários da internet e as pegadas digitais que tantos deles deixam nos sites combinam-se para tornar cada vez mais provável que todo vídeo embaraçoso, toda foto íntima e todo e-mail indelicado sejam atribuídos a sua fonte, quer esta o deseje, quer não”.

Levou apenas um dia para que Rich Lam, fotógrafo freelance que documentou os distúrbios de rua em Vancouver, rastreasse e identificasse um casal registrado (acidentalmente) em uma de suas fotos se beijando apaixonadamente. Tudo o que é privado agora é feito, potencialmente, em público – e está potencialmente disponível para consumo público; e continua sempre disponível, até o fim dos tempos, já que a internet “não pode ser forçada a esquecer” nada que tenha sido registrado em algum de seus inumeráveis servidores.

Há também o desejo de nos comunicar, não com aqueles que nos são próximos e que sofrem em silêncio, mas com alguém imaginado e construído, nossa própria projeção ideológica – e esse desejo caminha de par com uma inflação de palavras e conceitos convenientes. Novas formas de censura coexistem – da maneira mais estranha – com a linguagem sádica e canibalesca encontrada na internet e que corre solta nas orgias verbais do ódio sem face, nas cloacas virtuais em que se defeca sobre os outros e nas demonstrações incomparáveis de insensibilidade humana (em especial nos comentários anônimos).

Decadência Social

A civilização é a dessecação da criatividade e a decadência silenciosa da cultura. A cultura não é intelectual e teoricamente sofisticada, mas é um pré-fenômeno da história do qual surgem todas as coisas que vemos e lemos em seus anais. Não é a história que dá à luz a cultura, mas vice-versa, a cultura é a possibilidade e a realidade. Assim, a cultura possível (mögliche Kultur) é a possibilidade da história, e a cultura real (wirkliche Kultur) é a própria história, ou a cultura transformada em história, pois somos sempre confrontados pelo mundo como natureza e pelo mundo como história. O primeiro é governado pela causalidade e o segundo pelo cego e inexplicável destino. A cultura não tem causas, desenvolve-se e expande-se como uma flor que nos proporciona beleza, mas decerto não existe por nossa causa.

A cultura não reflete nem explica a si mesma, ela é sustentada pela fé, por um sentido espontâneo de insignificância e por um desejo de existir. Por outro lado, a civilização não quer ser, mas explica perfeitamente a si mesma e ao mundo como um todo, ela é o lar da decadência e de uma intelectualidade vazia e sem alma, assim como de uma autointerpretação desprovida de qualquer sentido, da qual ser e estar no mundo são algo significativo. A civilização é o último estágio de uma cultura ciclicamente existente, sua retirada silenciosa e sua decadência. Como isso acontece? A fé se atrofia, a filosofia morre e as artes degeneram. As formas culturais não são mais imbuídas de nenhum estilo, tudo é frouxo, vago e governado por gostos e avaliações arbitrários.

A filosofia retroage a uma atividade circunscrita. Há mais características de filósofo num cientista, especialista em finanças ou estadista que num professor de filosofia. (De acordo com Spengler, os rostos dos políticos americanos se parecem com os dos senadores romanos, ilustrando desse modo a ideia do fim de uma história ciclicamente recorrente – um financista dado a filosofar, como George Soros, provavelmente iria ilustrar essa tese.) A arte tornou-se uma exposição cansativa e sem sentido de técnicas avançadas ou uma forma de expressão tóxica e autodestrutiva. A cultura nada mais tem a ver com a história e a existência. O único problema vivenciado pela humanidade é a vida em si – ou, mais precisamente, ganhar a vida e sobreviver. É difícil não concordar com ele.

Mikhail Bulgákov previu o ingresso de Satã no mundo sob o disfarce da modernidade anti-humana, embora em O Mestre e Margarida Woland, o Príncipe das Trevas, ainda pudesse dizer que manuscritos não ardem. Mas depois veio uma época em que não apenas eles ardiam, como também não significavam coisa alguma para os seres humanos. Isso não aconteceu porque ninguém os lesse. Orwell previu que mais cedo ou mais tarde o totalitarismo destruiria a linguagem e as zonas de sensibilidade que nos capacitam a reconhecer os grandes textos da literatura e da filosofia. Ele compreendeu que a humanidade iria lutar contra o passado e a memória, lares dos sonhos e das promessas. Mas a verdade que Zamyatin nos revelou – e Michel Houellebecq, esse gênio da percepção psicológica e sociológica, desenvolveu com mais profundidade – é que logo, logo Dante e Shakespeare nada mais significarão para nós porque não vivenciaremos mais os sentimentos e dramas humanos que deram origem a essas obras imortais.

Aqui confrontamos diretamente esses processos e vemos aonde eles levam. Tudo que resta aos laços humanos é o medo abrangente e paralisante da decadência social. Além disso há somente o vazio e o horror da extinção. A possibilidade de uma ilha, de Houellebecq, é uma teoria sociológica da decadência da sociedade, uma teoria apresentada sob forma de literatura e que desenvolve uma narrativa convincente. A decadência da sociabilidade na fase tardia da modernidade não é uma fantasia. As pessoas não querem mais estar juntas. Não têm mais razão alguma para ficar umas com as outras. O novo êxodo, a dispersão de nações pequenas e pobres, não é novo nem sensacional, tal como a Lituânia ou, mais obviamente ainda, a Armênia.

Houellebecq também transfere a lógica do determinismo para as relações humanas. Essas relações nascem, amadurecem, depois definham e morrem, tal como corpos, sociedades e culturas. Sem as relações entre homem e mulher expressas em palavras, encontro de olhares, toques, nudez, confissões, fantasias eróticas, sexo, tensões eternas, fatais, e todas as possibilidades de iniciar e terminar uma relação e ficar desapontado, as relações humanas logo se dissipam, ainda que, segundo Houellebecq, estejam de qualquer modo condenadas ao fim. A história das relações humanas é sempre cíclica: elas começam, desenvolvem-se e então definham e expiram silenciosamente. Só uma pessoa amada ou amiga pode romper o ciclo e sobrepujá-lo. Superar o ciclo das relações humanas e sua decadência constitui a própria essência do amor e da amizade. Pois o tédio e o senso de futilidade constituem o destino do homem tecnológico, como afirmou Malcolm Muggeridge; e determinismo e fatalismo são aspectos, ou mesmo condições necessárias, da sociedade tecnológica (a nova humanidade, como diria Houellebecq). Não há alternativas a essa época e a seu espírito de autodestruição. Como ninguém vive por alguma coisa que esteja além de nós, ou pelo menos que não seja nós, nada pode tornar-se um grande desafio ou preocupação existencial, a não ser a vida em si.

Como diria Houellebecq, a história das relações humanas é sempre cíclica: elas nascem, se desenvolvem, fenecem e morrem. Mas a esperança está no fato de que, como já observamos, existe alguém que rompe esse ciclo e o supera, uma pessoa amada ou amiga. Essa superação do ciclo de vida das relações humanas e sua decadência constituem a própria essência do amor e da amizade; e também da esperança de que, como disse Dylan Thomas, “a decadência não venha a ter nenhum domínio”.

Essa é uma questão problemática e muitíssimo contenciosa. Não há carência de excursões exploratórias – tentativas desesperadas de encontrar novos instrumentos de ação coletiva mais eficazes num ambiente cada vez mais globalizado que as ferramentas políticas inventadas e postas a funcionar durante a era pós-westfaliana de construção nacional; e que terão maior possibilidade de proporcionar a fruição da vontade popular do que poderiam sonhar os órgãos do Estado aparentemente “soberano”, enredados num dilema.

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