O Ordenamento Jurídico: Norma, Fontes e Antinomias

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O ordenamento: as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si. O objeto principal da análise e o verdadeiro elemento primeiro da realidade jurídica é a norma em si. O Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas.

Nomostática e Nomodinâmica

  • Nomostática: considera os problemas relativos à norma jurídica.
  • Nomodinâmica: considera os problemas relativos ao ordenamento jurídico.

Critérios de Caracterização da Norma Jurídica

Das tentativas realizadas para caracterizar o Direito através de elementos da norma jurídica, podem-se considerar quatro critérios:

  1. Critério Formal

    Através de qualquer elemento estrutural das normas que se costuma chamar de jurídicas. Com respeito às estruturas, podem distinguir-se em:

    1. Positivas ou negativas;
    2. Categóricas ou hipotéticas;
    3. Gerais (abstratas) ou individuais (concretas).

    A primeira e a terceira distinções não oferecem nenhum elemento caracterizador do Direito. Quanto à segunda, admitimos apenas normas hipotéticas, as quais podem assumir estas duas formas:

    1. Se queres A, deves B, segundo a teoria da norma técnica ou das regras finais;
    2. Se é A, deve ser B, onde A é o fato jurídico (ou ilícito) e B a consequência jurídica (ou sanção).

    Em nenhuma dessas duas formulações a norma jurídica assume uma forma caracterizante: a primeira formulação é própria de normas técnicas e a segunda de normas condicionadas.

  2. Critério Material

    Pode-se extrair do conteúdo das normas jurídicas, das ações reguladas. Objeto de regulamentação por parte das normas jurídicas são todas as ações possíveis do homem (aquelas que não são nem necessárias nem impossíveis). Foram feitas tentativas de separar um campo de ações reservadas ao Direito, que possuem duas distinções:

    1. Ações internas e ações externas;
    2. Ações subjetivas e ações intersubjetivas.

    As categorias das ações externas e das ações intersubjetivas são extremamente genéricas e podem servir para distinguir o Direito da Moral, mas não das regras do costume.

  3. Critério do Sujeito que Põe a Norma

    Considera jurídicas as normas postas pelo poder soberano (aquele que detém o monopólio da força). Há convergência entre a teoria do Direito como regra coativa e a como emanação. Poder soberano refere-se àquele conjunto de órgãos através dos quais um ordenamento normativo é posto, conservado e se faz aplicar. Poder soberano e ordenamento jurídico são dois conceitos que se referem um ao outro. A soberania caracteriza não uma norma, mas um ordenamento.

  4. Critério do Sujeito ao Qual a Norma é Destinada

    Duas variantes, conforme o destinatário seja o súdito ou o juiz. A afirmação simples de que a norma jurídica é a dirigida aos súditos é inconclusiva por sua generalidade. A segunda variante é a destinação das normas ao juiz, mas somente significa alguma coisa se for definida a noção de juiz.

A Proeminência do Ordenamento Jurídico

O que comumente chamamos de Direito é mais uma característica de certos ordenamentos normativos do que de certas normas. Só em uma teoria do ordenamento o fenômeno jurídico encontra sua adequada explicação. Algumas normas são válidas, mas não eficazes, porque jamais foram aplicadas; o problema da validade e da eficácia diminui se nos referimos ao ordenamento jurídico, no qual a eficácia é o próprio fundamento da validade.

Essa posição proeminente que se dá ao ordenamento jurídico conduz a uma transmutação da perspectiva no tratamento de alguns problemas da teoria geral do Direito. Enquanto pela teoria tradicional, um ordenamento se compõe de normas jurídicas, na nova perspectiva, normas jurídicas são aquelas que venham a fazer parte de um ordenamento jurídico.

Tipos de Normas no Ordenamento

O ordenamento jurídico é um conjunto de normas. Existem três possibilidades de conceber um ordenamento composto de uma norma única (inconcebível um ordenamento com uma só norma e seria preciso erigir em norma particular a ordem de não prejudicar a ninguém):

  • Tudo é permitido;
  • Tudo é proibido;
  • Tudo é obrigatório.

As normas que compõem um ordenamento jurídico são, primariamente, normas de conduta. Existe um outro tipo de normas que costumamos chamar de normas de estrutura ou de competência. São aquelas que não prescrevem a conduta que se deve ter ou não ter, mas as condições e os procedimentos através dos quais emanam normas de condutas válidas. O fato de existir apenas uma norma de estrutura tem por consequência a extrema variabilidade de normas de conduta no tempo.

Problemas Fundamentais do Ordenamento

Os principais problemas com a existência de um ordenamento são os que nascem das relações das diversas normas entre si:

  1. Unidade e Hierarquia: Se essas normas constituem uma unidade, e como a constituem. O problema fundamental é o da hierarquia das normas.
  2. Sistema e Coerência: Se o ordenamento jurídico constitui também um sistema. O problema fundamental é o das antinomias jurídicas.
  3. Completude: Todo ordenamento jurídico unitário e tendencialmente sistemático pretende também ser completo. O problema fundamental é o das lacunas do Direito.
  4. Relações entre Ordenamentos: Existe entre os homens diversos ordenamentos. O problema fundamental é o do reenvio de um ordenamento a outro.

Fontes do Direito e Complexidade do Ordenamento

A dificuldade de rastrear todas as normas que constituem um ordenamento jurídico depende do fato de as normas não derivarem de uma única fonte. Ordenamentos podem ser simples e complexos, conforme as normas que o compõem derivem de uma ou mais fontes. Os ordenamentos que constituem a nossa experiência de historiadores e de juristas são complexos.

A complexidade do ordenamento é devida ao fato de que a necessidade de regras de conduta numa sociedade é tão grande que não existe poder que possa satisfazê-la sozinho; recorre-se geralmente a dois expedientes:

  1. A recepção de normas já feitas por ordenamentos diversos e precedentes;
  2. A delegação do poder de produzir normas jurídicas a poderes ou órgãos inferiores.

Em cada ordenamento, ao lado de fontes diretas, temos fontes indiretas (fontes reconhecidas e fontes delegadas).

  • Exemplo de recepção e de fonte reconhecida é o costume nos ordenamentos estatais modernos, onde a fonte direta e superior é a lei.
  • Exemplo de fonte delegada é o regulamento com relação à lei.

Outra fonte é o poder atribuído aos particulares de regular, mediante atos voluntários, os próprios interesses — o poder de negociação, em destaque a autonomia privada.

O Poder Originário e Seus Limites

O ponto de referência último é o poder originário — fonte das fontes. A multiplicação das fontes deriva de uma autolimitação do poder soberano (limite interno do poder normativo originário).

A problemática da limitação externa e interna do poder originário é refletida nas duas concepções com as quais os jusnaturalistas explicaram a passagem do estado natural ao estado civil, que se forma através do contrato social:

  • Hipótese Hobbesiana: Renúncia aos direitos do estado natural. O poder civil nasce sem limites; a limitação futura será a autolimitação. A soberania civil nasce absoluta.
  • Hipótese Lockiana: O poder civil tem como objetivo assegurar melhor os direitos naturais e nasce limitado por um direito preexistente. A soberania nasce já limitada (limites originários e externos).

Fontes do Direito são aqueles fatos ou atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas. O ordenamento jurídico, além de regular o comportamento das pessoas, regula também o modo pelo qual se devem produzir as regras — regula a própria produção normativa.

Normas de Primeira e Segunda Instância

Existem normas de comportamento (conduta) e de estrutura, isto é, normas dirigidas diretamente a regular a conduta das pessoas e normas destinadas a regular a produção de outras normas. A teoria da norma jurídica considera-a como imperativos — a ordem de fazer ou não fazer.

Existem também normas de segunda instância que seriam como comandos de comandar, etc. As normas de primeira instância possuem uma tripartição clássica em normas imperativas, proibitivas e permissivas; as de segunda instância possuem nove tipos:

  1. Normas que mandam ordenar;
  2. Normas que proíbem ordenar;
  3. Normas que permitem ordenar;
  4. Normas que mandam proibir;
  5. Normas que proíbem proibir;
  6. Normas que permitem proibir;
  7. Normas que mandam permitir;
  8. Normas que proíbem permitir;
  9. Normas que permitem permitir.

Unidade, Hierarquia e Norma Fundamental

A complexidade do ordenamento não exclui sua unidade. As normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano — há normas superiores e inferiores; chegando-se a uma norma suprema, na qual repousa a unidade do ordenamento, que é a Norma Fundamental (NF). As normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica.

Os termos execução e produção são relativos numa estrutura hierárquica, porque a mesma norma pode ser considerada executiva — com respeito à norma superior — e produtiva — com respeito à norma inferior. O grau mais baixo é constituído pelos atos executivos (somente executiva) e o mais alto pela norma fundamental (somente produtiva). Esse processo também pode ser esclarecido como poder e dever — a produção jurídica é a expressão de um poder, a execução revela o cumprimento de um dever — são dois conceitos correlatos.

Limites do Poder Normativo

Os ordenamentos têm forma de pirâmide. Os limites com que o poder superior restringe e regula o poder inferior são de dois tipos:

  1. Relativos ao conteúdo: refere-se ao conteúdo da norma que o inferior está autorizado a emanar. Podem ser positivos ou negativos.
  2. Relativos à forma: refere-se ao modo pelo qual a norma do inferior deve ser emanada. São constituídos por todas as normas da Constituição que prescrevem o modo de funcionamento dos órgãos legislativos.

As leis relativas ao Direito substancial podem ser consideradas como limites de conteúdo ao poder normativo do juiz. Leis relativas ao procedimento constituem os limites formais da atividade do juiz que está autorizado a estabelecer normas jurídicas no caso concreto. Juízos de equidade são aqueles em que o juiz está autorizado a resolver uma controvérsia sem recorrer a uma norma legal preestabelecida.

Fundamento da Norma Fundamental

Toda norma pressupõe um poder normativo: norma significa imposição de obrigações, onde há obrigação há poder. O poder constituinte é aquele do qual as normas constitucionais derivam. A Norma Fundamental atribui aos órgãos constitucionais poder de fixar normas válidas e impõe a todos aqueles aos quais se referem as normas constitucionais o dever de obedecê-las; é ao mesmo tempo atributiva e imperativa. Se não postulássemos uma NF, não teríamos o ponto de apoio do sistema, a ela nos referimos como fundamento da legitimidade de todo o sistema.

A pertinência de uma norma a um ordenamento se chama validade. Para que uma norma seja válida, tem que advir de uma autoridade com poder legítimo de estabelecer normas jurídicas. No caso de formulação de uma norma superior à NF, teríamos:

  1. Todo poder vem de Deus (poder normativo divino);
  2. O dever de obedecer ao poder constituinte deriva da lei natural;
  3. O dever de obedecer ao poder constituído deriva de uma convenção originária (fundamento no contrato social).

O poder originário é o conjunto das forças políticas que num determinado momento histórico instauraram um novo ordenamento jurídico. Normas secundárias são as que regulam o modo que devem ser aplicadas as sanções, regulam o exercício da força.

O Ordenamento Jurídico como Sistema

Há o problema se um ordenamento jurídico, além da unidade, constitui um sistema — se é uma unidade sistemática. Sistema é uma totalidade ordenada, conjunto de entes onde existe uma certa ordem (coerência entre si).

Sistemas Estático e Dinâmico (Kelsen)

Kelsen distingue dois tipos de sistema:

  • Sistema Estático: As normas estão relacionadas umas às outras como proposições de um sistema dedutivo (exemplo: ordens morais). A relação entre as normas é material (conteúdo).
  • Sistema Dinâmico: As normas que o compõem derivam umas das outras através de sucessivas delegações de poder, através da autoridade que as colocou, até chegar à autoridade suprema (exemplo: ordenamento jurídico). A relação entre as várias normas não é material, mas formal.

A interpretação sistemática é a forma de interpretação que tira os seus argumentos do pressuposto de que as normas de um ordenamento constituam uma unidade ordenada, logo é lícito esclarecer uma norma obscura ou integrar uma norma deficiente recorrendo ao chamado espírito do sistema.

Três Sentidos de Sistema na Ciência do Direito

  1. Sistema Dedutivo: Próximo ao sistema dedutivo, um dado ordenamento é um sistema enquanto todas as normas jurídicas deste são derivadas de alguns princípios gerais (pretensão dos jusnaturalistas modernos).
  2. Sistema Empírico/Classificatório: Está na ciência do Direito moderno que nasce da pandectista alemã e vem de Savigny. Indica um ordenamento da matéria, realizado através do processo indutivo, partindo do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais e classificações.
  3. Sistema Coerente: O ordenamento jurídico constitui sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. As normas de um ordenamento têm relacionamento de compatibilidade.

Antinomias Jurídicas

Antinomias são normas incompatíveis entre si — o Direito não tolera. Uma das finalidades da interpretação jurídica era eliminar as antinomias recorrendo aos diversos métodos hermenêuticos.

Relações de Incompatibilidade Normativa

As relações de incompatibilidade normativa são:

  1. Entre norma que ordena e uma que proíbe (Contrariedade);
  2. Entre norma que ordena fazer e uma que permite não fazer (Contraditoriedade);
  3. Entre norma que proíbe e uma que permite.

Condições para a Ocorrência de Antinomias

Para que ocorram antinomias, são necessárias duas condições:

  1. As duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento.
  2. As normas devem ter o mesmo âmbito de validade (temporal, espacial, pessoal e material).

Tipos de Antinomias

  1. Total-Total: Normas incompatíveis com igual âmbito de validade (ex: proibição da greve e permissão desta).
  2. Parcial-Parcial: Âmbito de validade parte igual e parte diferente; há antinomia somente para a parte comum.
  3. Total-Parcial: Âmbito de validade na íntegra igual a uma parte do da outra.

Antinomias Impróprias

São antinomias no Direito com referência ao ordenamento jurídico inspirado em valores contrapostos (ex: liberdade e segurança). Incluem:

  • Antinomias de Princípio: Não são jurídicas propriamente, mas podem dar lugar a normas incompatíveis.
  • Antinomias de Avaliação: Uma norma pune um delito menor com uma pena mais grave do que a infligida a um delito maior (injustiça).
  • Antinomias Teleológicas: Oposição entre a norma que prescreve o meio para alcançar o fim e a que prescreve o fim (lacuna).

Regras para a Solução de Antinomias

A eliminação da antinomia consistiria na eliminação de uma das normas ou das duas. Existem antinomias solúveis (aparentes) e insolúveis (reais).

  1. Critério Cronológico: Prevalece a norma posterior (lex posterior derogat priori).
  2. Critério Hierárquico: Prevalece a norma superior.
  3. Critério da Especialidade: Entre uma geral e uma especial, prevalece a especial (lex specialis derogat generali).

Antinomias de Segundo Grau (Conflito de Critérios)

Quando os critérios de solução entram em conflito:

  1. Conflito entre Hierárquico e Cronológico: O Hierárquico prevalece.
  2. Conflito entre Especial e Cronológico: O Especial prevalece.
  3. Conflito entre Hierárquico e Especial: O Especial prevalece.

A coerência não é condição de validade, mas é condição para a justiça do ordenamento.

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