Princípios Contratuais: Autonomia e Função Social
Classificado em Língua e literatura
Escrito em em
português com um tamanho de 12,25 KB
Princípios do Contrato
Autonomia da Vontade
O direito de livre contratar é a expressão maior do ideário burguês pós-revolucionário e constitui um princípio vinculado à noção de liberdade e igualdade presente na decantada Declaração de Direitos. É um dos pilares do Código de 1804 e está presente em todos os sistemas do mundo ocidental. Mercê desse cânone, à pessoa humana, enquanto ser dotado de personalidade e como cidadão livre, é dado pactuar nas condições que julgar adequadas, contratando como, com quem e o que desejar. Trata-se da faculdade de dispor cláusulas, firmando o conteúdo do contrato e criando, inclusive, novas modalidades contratuais, ou seja, os contratos atípicos.
Há uma explicação histórica para essa liberdade. Livre das peias do absolutismo, o homem pôde interagir e buscar o que de melhor havia para si, cumprindo ao Estado intervir apenas para assegurar a execução do contrato não cumprido, isto é, para fazer valer a palavra empenhada e não honrada. A essa esfera de poderes, que impede a ingerência do Estado, abrindo espaço para a movimentação do particular, costuma-se chamar direitos de primeira geração.
A liberdade na contratação parte da premissa de que a vontade de ambos os contratantes tem o mesmo peso e que a contratação é lícita e legítima pelo só fato de respeitar a vontade de cada um. Disso se cunharam as expressões antes referidas, de que o contrato faz lei entre as partes e o combinado não é caro. Essa premissa permitiu, por exemplo, que trabalhadores europeus, no auge da Revolução Industrial, fossem contratados para laborar mais de doze horas por dia em troca de um salário de fome e sem qualquer assistência social. Não tardaria para que a classe operária, iludida pela Revolução de 1789, deflagrasse conflitos por toda a França, pondo em xeque as conquistas burguesas.
A ambição burguesa leva ao extremo o papel da vontade, firmando uma falsa ideia: a de que, sendo os homens naturalmente livres e iguais, a vontade de um contratante, por ser livre e igual à do outro, é suficiente para legitimar a convenção. Tal raciocínio seria verdadeiro se os homens fossem naturalmente livres e iguais, mas não o são nem poderiam ser. Os textos pós-revolucionários estabelecem o primado da liberdade e da igualdade para todos, mas isso não vai além do formalismo. A igualdade material, que pressupõe tratamento desigual para situações desiguais, é algo não cogitado ou propositadamente esquecido.
Hobbes, no seu Leviatã, via no homem um lobo na relação com o semelhante. Rousseau, em seu Contrato Social e com a teoria do bom selvagem, dizia ser o homem bom por natureza, porém corruptível na vida gregária. Não se trata de uma visão pessimista do gênero humano, mas sim de uma visão realista. Nos últimos anos do século XIX e primeiros do século XX, o governo brasileiro estimulou a vinda de mão de obra europeia para trabalhar nas fazendas de café do Sudeste. Aqui chegando, os imigrantes enfrentavam um ambiente hostil e um salário miserável, e muitos se queixavam, trabalhando contrariados. O barão do café, em sua mentalidade misoneísta, não entendia como alguém podia se queixar de cumprir a palavra empenhada, afinal, o combinado não é caro. Que alternativa restava ao infeliz imigrante senão submeter-se aos desígnios do empregador? Por isso, tanto o governo alemão como o italiano, ainda no século XIX, proibiram a emigração para o Brasil, decisão revista apenas décadas mais tarde.
Chegou um tempo em que o Estado interveio no campo dos contratos. Primeiro, fê-lo na locação de serviços, disciplinando o contrato de trabalho a fim de:
- Delimitar a jornada diária;
- Estabelecer o direito a férias;
- Garantir o salário mínimo;
- Assegurar a assistência previdenciária, dentre outros benefícios.
Mais recentemente, na disciplina consumerista, reconheceu a condição de inferioridade do consumidor, assegurando-lhe direitos até então impensáveis, como a facilitação do acesso à justiça com a inversão do ônus da prova e, especialmente, na disciplina dos contratos de adesão.
Em ambos os casos, percebe-se a tentativa do Estado de preservar o equilíbrio contratual, impondo um contrapeso na balança. As partes (empregador e empregado, fornecedor e consumidor) são materialmente desiguais; a vontade de uma prepondera sobre a da outra (o consumidor precisa do produto, o empregado não pode prescindir do salário). Logo, do poder público exigem-se providências para manter o equilíbrio, seja pelo dirigismo contratual, pela delimitação da vontade ou, finalmente, pela criação de mecanismos facilitadores de direitos à parte em desvantagem. Como atesta Lorenzetti, a ordem jurídica atual não deixa em mãos dos particulares a faculdade de criar ordenamentos contratuais, equiparáveis ao jurídico, sem um interventor [5]. Nesse caso, ao Estado reserva-se o papel de fiel da balança.
O princípio da autonomia da vontade continua válido e informa todo o sistema contratual, mas não subsiste senão interagindo com outros princípios.
Função Social do Contrato ou Supremacia da Ordem Pública
A ninguém será dado negar o caráter essencial da vontade como elemento do negócio jurídico. Mas há de se reconhecer e compreender, também, o extremismo a que ela foi levada pela burguesia pós-revolucionária, a qual, uma vez assentada no poder, tratou de afastar de si o Estado e seu absolutismo. Superado isso, também não há como negar as limitações impostas ao direito de contratar, conforme se viu ao final do item anterior. Todavia, surge agora o problema de saber sob quais fundamentos e por quais razões a vontade, outrora levada ao seu mais alto grau, foi sendo lentamente delimitada pelo legislador.
Sabe-se que a sociedade é uma condição necessária ao ser humano, que, para se realizar e alcançar seus propósitos, não pode isolar-se como um náufrago em ilha deserta. Por isso o homem, um ser carente de riquezas, conserva-se em sociedade e nela busca sua realização pessoal. O contrato é um dos meios para essa autorrealização. Um homem apreciador de boa bebida não sabe fabricá-la nem pode furtá-la; pode adquiri-la por compra e venda. Assim, manifesta a vontade de comprar e, pagando o preço, obtém a coisa. Este é um negócio lícito, que satisfaz ambas as partes, incrementa a circulação de riquezas e atende aos escopos do Estado, que é o da felicidade das pessoas.
Contudo, é possível que, ao expressar a vontade e produzir um dado efeito jurídico, o contratante extrapole o comportamento razoável e produza uma lesão à ordem pública, cujos interesses restarão violados. O fim último do Estado é o bem-estar dos indivíduos que dele fazem parte e, assim, o contrato não só deve satisfazer os contratantes como também deve respeitar os interesses da coletividade em geral. Um contrato de transporte de entorpecentes, por exemplo, pode satisfazer ambas as partes, mas não cumpre uma função social. O contrato para caça de animais selvagens também pode ser da conveniência das partes, mas não observa uma funcionalização, pois viola o interesse coletivo, representado pelo ambiente sadio e equilibrado.
Logo, nem sempre a conjunção das vontades, embora do agrado de ambos, será suficiente para legitimar e imprimir força a um contrato.
Gustavo Tepedino narra o curioso exemplo ocorrido há poucos anos no sul da França, onde, num determinado bar noturno, os convivas, já animados pelo estado etílico, punham-se a arremessar um anão de mesa em mesa, como se atirassem um objeto. A esta pilhéria, digna de uma aventura quixotesca e que se convencionou chamar arremesso de anão, não se opunha o pequeno e bom homem; aliás, a brincadeira rendia-lhe algum dinheiro e, ao que parece, ele estava contratado pelo estabelecimento para se prestar ao pitoresco papel. O Ministério Público local pediu a interdição da brincadeira, ao argumento de lesão à personalidade do anão, cujo trabalho ofendia sua dignidade. Mesmo diante do arrazoado do trabalhador, de que lhe seria difícil obter ocupação lucrativa, até por sua compleição física desfavorável, o Judiciário francês proibiu o evento [6]. Trata-se de um caso em que a vontade, livremente manifestada e conveniente a ambos os contratantes, não prevaleceu por ofensa à dignidade do próprio contratante.
Em situação semelhante encontra-se a chamada locação de útero. Segundo essa prática, uma mulher com óvulo fecundado, mas incapaz de sustentar uma gravidez, acorda o implante do óvulo no útero de outra mulher, apta a manter a gestação até o final. Duas mulheres concorrem, assim, para o nascimento da criança: a mãe biológica e a mãe uterina. Aqui, a vontade de ambas é livremente manifestada, mas não haveria lesão à personalidade da mãe uterina ao dispor onerosamente de seu órgão? Hoje a questão foi definitivamente resolvida, porquanto é vedada a disposição onerosa de órgãos, mas no passado gerou algum debate doutrinário e jurisprudencial.
Precisar a amplitude do interesse público não é tarefa tão fácil quanto parece. Em relação à propriedade, o tema encontra-se sedimentado, pois sua função social está positivada no sistema desde 1934. Mas a função social do contrato, como norma positivada, era um cânone desconhecido da legislação anterior a 2002. Às vezes, têm-se critérios seguros para apurar a funcionalização das convenções: não haverá função social quando seu objeto for ilícito ou impossível, como no exemplo do transporte de entorpecentes (ilicitude) ou no caso de alienação de coisa fora de comércio (impossibilidade). No primeiro caso, o ato foge à ordem social, que conhece os males provocados pela droga; no segundo, não existe circulação de riquezas. Nenhum dos contratos interessa à sociedade, porque ambos lhe são hostis.
Contudo, diante de numerosos casos, o intérprete se vê na dúvida, e a ausência de preceito expresso não traz segurança para adotar uma solução. A questão repousa em saber qual o limite da vontade e em que caso o interesse público é violado. No exemplo do anão, parece haver um conflito axiológico, representado pela colisão entre dois valores: o direito à livre iniciativa (autonomia da vontade) e a dignidade da pessoa humana (função social). Ninguém há de duvidar de que a dignidade do homem constitui um interesse público, pois à sociedade repugna tanto a escravidão quanto o trabalho degradante. Então, a solução para o problema é de hermenêutica, repousando em saber se o trabalho desempenhado pelo anão é ou não degradante de sua honra.
A exegese de um contrato, como já se vê e se deduz do rumo que se deu a este artigo, escapa ao campo privatista e alcança o terreno constitucional. Na interpretação de um contrato, há de se levar em conta, antes de tudo, o rol dos fundamentos e objetivos propostos para a nação e, entre nós, eles estão nos arts. 1º a 4º do Texto de 1988. Um deles é primaz e jamais será esquecido em qualquer negócio jurídico: o princípio da dignidade da pessoa humana, valor para o qual converge todo o sistema privado brasileiro. Por força desse cânone de aplicação plena, o ser passa a desempenhar um papel maior que o ter. A ideia da repersonalização derroga a mentalidade da patrimonialização do contrato.
Logo, o contrato cumpre uma função social quando, respeitando a dignidade do contratante, não viola o interesse da coletividade, à qual não interessam nem a ilicitude do objeto nem a ociosidade das riquezas. Para assegurar a funcionalização das avenças, foi preciso que o Estado interviesse no campo contratual, qualificando seu conteúdo e dando ensejo ao que se chama direitos de segunda geração. Há um evidente contraste, pois os direitos de geração anterior eram caracterizados pela ausência do Estado; os direitos oriundos da função social do contrato são marcados pela postura contrária, ou seja, pela ingerência do poder público no campo privado.