Processo Eletrônico: Publicidade, Intimidade e Segredo de Justiça

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Em face das contradições fortemente presentes na sociedade contemporânea, o Acesso à Justiça e à Informação constituem temas atuais e, igualmente, desafiadores. Sociedade caracterizada pela presença das tecnologias de informação e comunicação, que, cotidianamente, reconfiguram as nossas formas de agir, pensar, produzir, trabalhar, e que, segundo Maffesoli[2], se forem bem utilizadas, podem trazer um novo reencantamento do mundo.

Cada vez mais as pessoas se utilizam das tecnologias de informação para suas atividades habituais diárias. Exemplo disso é a rede mundial de computadores, denominada Internet[3], que apresenta notória expansão na disponibilização online dos jornais, revistas, programas de televisão, comércio, mecanismos de compra/venda de produtos diversos, etc., característica da quebra de fronteiras da economia e dos institutos definidores de instrumentos de informação, cada vez mais globalizada. Dessa forma, não parece lógico que a atividade jurisdicional viva alheia a toda essa realidade.

Objetivando dar agilidade e maior efetividade à prestação jurisdicional, foi criado por meio da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, o processo eletrônico[4], por meio do qual é possível a prática de atos processuais por meios eletrônicos, bem como a transmissão de peças processuais produzidas pela rede mundial de computadores.

Essa novidade empregada no âmbito jurisdicional pretende facilitar a agilidade na resolução dos conflitos por parte dos servidores; a publicidade, assim praticada no processo eletrônico, busca ampliar o conhecimento das partes em todas as suas esferas.

Apesar de, aparentemente, trazer benefícios diversos à prestação jurisdicional, principalmente no que toca à divulgação das decisões judiciais e atos processuais na rede mundial de computadores, todo esse mecanismo pode vir a esbarrar em direitos individuais não menos importantes. O principal deles é aquele referente à Intimidade das pessoas, direito regularmente previsto no art. 5º, X, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[5]. Verifica-se, a partir daí, que quanto maior a publicidade empregada, menor estará resguardado o direito à intimidade; por outro lado, a garantia do direito à intimidade tende a restringir a aplicação do princípio da publicidade.

São, portanto, valores antinômicos. Dessa reflexão nasce um latente paradoxo: por um lado, a maior agilidade da justiça, principalmente no que se refere aos atos por ela praticados; por outro, a exposição das facetas das lides em um instrumento de fácil acesso ao público e que cada vez mais abrange o cotidiano da população em geral.

A Colisão entre Valores: Publicidade e Intimidade

A Publicidade[6] dada aos atos judiciais tem o condão de garantir aos cidadãos a correta aplicação da justiça visando tornar transparentes os atos processuais praticados pelo magistrado durante a persecução civil ou penal.

Nesta nova perspectiva do Direito, no entanto, deixa-se de lidar apenas com a possibilidade de um indivíduo ver a sua intimidade exposta na grande rede, fato passível de ocorrer até mesmo no processo convencional. Aqui está em jogo algo muito mais relevante: a exposição da intimidade em larga escala, que pode atingir toda a coletividade.

Enfrentamos, assim, um grave problema a ser equacionado, no que diz respeito à intimidade e à privacidade no processo eletrônico, necessitando equacionar a dicotomia entre publicidade e intimidade. Para tanto, deve-se adotar a ponderação de princípios, de forma que nenhum deles deve ser interpretado de maneira irrestrita e absoluta. Busca-se, dessa forma, a relativização do princípio da publicidade em prol do direito à intimidade. Essa, inclusive, é a orientação da Suprema Corte:

“Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa –, permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”[7]

Busca-se, no presente artigo, abordar o princípio da publicidade com o propósito de verificar as situações em que sua aplicação pode interferir na intimidade ou no interesse social, casos que se recomendaria que o processo judicial ou administrativo devesse tramitar em segredo de justiça.

Aspectos Destacados do Segredo de Justiça

Por imposição constitucional (arts. 5º, LX[8] e 93, IX[9]), os atos processuais são públicos – o que se contrapõe ao caráter sigiloso. Dessa maneira, qualquer pessoa pode ter acesso aos autos ou acompanhar sessões correlatas (audiências, julgamentos nos tribunais, hastas públicas, etc.).[10]

Aliás, a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, ratificou a exigência da publicidade de todos os atos provenientes dos órgãos do Poder Judiciário, dando nova redação aos incisos IX e X do art. 93 da CRFB/1988:

“(...) IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; X – as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros (...)”.[11]

A alteração feita pela Emenda Constitucional nº 45 registra que deve-se levar em conta a proporcionalidade entre o direito à intimidade do interessado e o interesse público. Na redação anterior, mencionava apenas a predominância do interesse público.[12]

A alteração, contudo, é meramente formal, sem deixar de ser salutar, pois, ainda na redação anterior, mesmo sem expressa dicção, deveria o juiz observar a proporcionalidade entre o interesse público e os valores garantidos pelo disposto no art. 5º, X[13], quais sejam: a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.[14]

A intimidade se encontra no rol dos Direitos Humanos[15], ao passo que a publicidade dos atos é também um dever dos órgãos jurisdicionais[16].

Percebe-se, assim, que as partes têm direito fundamental à publicidade do processo judicial e também direito à intimidade. Isso, em razão de tais valores estarem consagrados na CRFB/1988, tendo em vista a incidência da norma que se extrai do disposto no art. 5º, parágrafo 1º, que estabelece: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” Nesse contexto, observando-se essa antinomia, extrai-se que a preservação do interesse público depende de previsão legal, mas não depende de lei a preservação do direito à intimidade.

Na interpretação do art. 155, I, do Código de Processo Civil[17], é assegurado o denominado segredo de justiça quando o interesse público assim exigir. Dessa forma, poderão os juízes, utilizando conjuntamente o princípio da motivação das decisões judiciais (preservado o direito de intimidade se este não prevalecer no caso concreto), mandar que o processo se faça reservadamente ainda que as partes ou o Ministério Público não formulem requerimento expresso neste sentido. Não se trata, aqui, do direito de demanda, o qual é disponível à parte nem da postulação da pretensão em juízo, mas de regra processual de direito público, indisponível às partes e sob a direção do magistrado, como se infere do disposto nos arts. 301, parágrafo 4º[18], e 125[19], do CPC.[20]

Como bem salientam Wambier, Talamini e Almeida[21], a expressão segredo de justiça é infeliz, porquanto não se trata de segredo, visto que o julgamento não ocorre a portas fechadas. Cuida-se, sim, de resguardar a intimidade dos litigantes ou de evitar que a publicidade possa ocasionar grande transtorno ou comoção social. No entanto, as partes e seus procuradores têm acesso aos autos, inclusive obtendo certidões. Nesse sentido, a Constituição, ao tratar do assunto, usou expressão mais adequada, qual seja: publicidade restrita.

No entanto, sabe-se que o segredo de justiça é expressão constante no jargão judiciário, embora se mostre inadequada, pois a Justiça, como serviço público, nunca é secreta, embora, eventualmente, alguns atos processuais possam ser reservados.[22]

Veja-se o ensinamento de Plácido e Silva sobre o denominado segredo de justiça:

“Assim se entende a prática de atos judiciais que, por sua natureza, devem ser praticados ou executados em particular, longe das vistas dos não interessados, ou subtraídos do conhecimento público. A prática de atos em segredo de justiça tanto se permite em processos criminais, como em processos civis. Nos processos civis, o segredo de justiça é autorizado em atenção ao decoro ou interesse social. E, nos processos criminais, é ele resultante das condições especiais do processo, o que se decide pelo árbitro que a eles preside, quando a lei assim não o determinar. Nos processos que correm em segredo de justiça, nenhuma certidão será fornecida sem prévia autorização do juiz. O contrário será permitir devassa em processo, sujeito à inviolabilidade”.[23]

A publicidade restrita foi adotada pelo atual diploma de Processo Civil, diferentemente do que previa os artigos 5º[24] e 19º[25] do Código de 1939. No entanto, essas limitações se contrapõem com o que rege o art. 5º, LX, da CRFB/1988, em razão de o princípio da publicidade admitir exceções, ou seja, quando o decoro ou o interesse social aconselharem, a sua utilização é perfeitamente aceitável, com o respaldo do art. 93, X, também da Constituição. Nesse esteio, como lecionam Cintra, Grinover e Dinamarco, “toda precaução deve ser tomada contra a exasperação do princípio da publicidade”. Os autores destacam:

Os modernos canais de comunicação de massa podem representar um perigo tão grande como o próprio segredo. As audiências televisionadas têm provocado em vários países profundas manifestações de protesto. Não só os juízes são perturbados por uma curiosidade malsã, como as próprias partes e as testemunhas veem-se submetidas a excessos de publicidade que infringem seu direito à intimidade, além de conduzirem à distorção do próprio funcionamento da Justiça por meio de pressões impostas a todos os figurantes do drama judicial.

Publicidade, como garantia política – cuja finalidade é o controle da opinião pública nos serviços da justiça – não pode ser confundida com o sensacionalismo que afronta a dignidade humana. Cabe à técnica legislativa encontrar o justo equilíbrio e dar ao problema a solução mais consentânea em face da experiência e dos costumes de cada povo”.[26]

Humberto Theodoro Júnior assevera que o princípio da publicidade é um instrumento de pacificação e harmonia social, por isso, na prestação jurisdicional, exerce um interesse público maior do que o defendido pelas partes:

“Na prestação jurisdicional há um interesse público maior do que o privado defendido pelas partes. É a garantia da paz e harmonia social, procurada por meio da manutenção da ordem jurídica. Por isso, a justiça não pode ser secreta, nem podem ser as decisões arbitrárias, impondo-se sempre a sua motivação, sob pena de nulidade. Esse princípio, porém, não impede que existam processos em segredo de justiça, no interesse das próprias partes (art. 155).”[27]

Neste diapasão, mister ressaltar que a publicidade excessiva que se faz presente em nossa sociedade da informação, viola e invade a privacidade e o respeito ao indivíduo, que, mesmo sendo processado, tem direito a manter a inviolabilidade de suas particularidades.[28]

A análise de casos envolvendo a publicidade excessiva dos atos processuais e a colisão com o direito à intimidade e à personalidade pode ilustrar a ideia de relativização do princípio processual.[29]

Essa ideia não se apresenta distante da doutrina. Em capítulo intitulado “A imperfeita percepção da publicidade como garantia do processo democrático”, Roberto José Ferreira de Almada, após discorrer sobre temas relevantes e a concepção sociocultural de nosso povo, observa que a publicidade é uma garantia do processo democrático:

“(...) exceto em situações muito particulares em que a privacidade e o interesse público possam efetivamente recomendar a restrição do direito de informação e de acesso irrestrito aos acontecimentos do processo, por parte das pessoas do povo”.[30]

Assim, a intenção é procurar critérios objetivos e constitucionais à relativização da publicidade, a fim de que não fique ao arbítrio dos magistrados ou ao dissabor dos jurisdicionados.

O escopo não é abolir o princípio da publicidade nem torná-lo menor ou mesmo provocar uma relativização tão absurda quanto o próprio excesso de informação que vem sendo perpetrado em nosso sistema judicial. As notícias judiciais passaram a ocupar os jornais e, com o advento da Internet, sequer se pode admitir o direito ao esquecimento, porque os dados podem ficar por anos instalados nos servidores, com a possibilidade de serem requisitados a qualquer tempo.[31]

Por isso, em razão do interesse público e da necessidade de se garantir a ordem na realização dos atos processuais, bem como em face de outros valores constitucionalmente previstos, dentre eles o direito à intimidade, admite-se restrições ao princípio da publicidade, razão pela qual os processos judiciais ligados ao direito de família e à infância e juventude devem tramitar em segredo de justiça:

O sigilo em atos judiciais, policiais e administrativos sempre foi, de certa forma, contemplado pela legislação ligada a atos de natureza processual, e da mesma forma, na medida em que impliquem em discussão de matéria relacionada à criança e ao adolescente, em determinados casos, como no inquérito policial, ter a autoridade policial melhor acesso às provas.

Assim é que o artigo 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente, abraçando orientação já contida no Código de Menores revogado, veda a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito à criança e ao adolescente a que se atribua ato infracional; observa ainda o § único do mesmo dispositivo, com alteração que lhe deu a Lei 10.764, de 12 de novembro de 2003, que, qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou o adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome”.[32]

Percebe-se que entre o princípio da publicidade e da motivação dos atos judiciais existe uma íntima relação, na medida em que a publicidade torna efetiva a participação no controle das decisões judiciais, sendo instrumento de eficácia da garantia da motivação das decisões judiciais.[33]

Nesse caso, pode o juiz decretar que alguns atos processuais (audiências, julgamentos, vistorias) se procedam em segredo de justiça, como também poderá determinar que as anotações do registro da causa fiquem reservadas, ou que os autos do respectivo processo fiquem sob a guarda do escrivão ou de determinado servidor do cartório ou da secretaria. Somente é permitido acesso ao processo aos representantes em juízo das partes, ao Ministério Público, seja agente ou interveniente na causa, ou a pessoas autorizadas por despacho judicial expresso.[34]

Em razão disso, a lei impõe limitações à publicação quanto a atos específicos, como ocorre nas medidas cautelares de arresto, sequestro e busca e apreensão. As ações cautelares em geral podem ser inicialmente processadas sem o consequente conhecimento do demandado, consoante dispõe o art. 804 do CPC[35]. Cuida-se, bem se vê, de limitação temporalmente determinada.[36]

Haverá casos em que o resguardo do sigilo será inerente à medida pleiteada, não podendo esperar até a decisão do magistrado para que o processo passe a tramitar em segredo de justiça. Em consequência disso, tem-se a possibilidade de realização de audiência de justificação prévia sem a presença do réu, para evitar tumulto na realização do ato. Como bem salienta Hélio do Valle Pereira:

“O reconhecimento do direito ao segredo de justiça, além de óbvia limitação quanto ao acesso ao processo, inclui medidas conexas que impeçam a divulgação de dados, mesmo que de forma menos ostensiva. De tal sorte, as intimações por meio de Diário da Justiça não podem identificar os litigantes (quando muito, as suas iniciais); os repertórios de jurisprudência não devem fazer menção às partes; os oficiais de justiça, ao efetuarem intimações, estão proibidos de revelar o assunto exposto no mandado – e assim sucessivamente”. [37]

Assim, em razão das restrições ao princípio da publicidade, mesmo aqueles que podem obter informações acerca do processo, ou seja, todos quantos tiverem acesso ao processo protegido pelo segredo de justiça assumem o dever de sigilo:

“Se o servidor público (no conceito amplo do art. 327 do Código Penal), em razão da função, revela os fatos descritos no processo, comete o crime do art. 325. O advogado que divulgar dados do processo no qual interveio comete o crime do art. 154.”[38]

A quebra do segredo de justiça constitui fato previsto no art. 154 do Código Penal[39], sem prejuízo das sanções de ordem administrativa ou civil cabíveis contra o serventuário, perito, advogado, membro do Ministério Público e até mesmo o juiz que decretou a medida, o qual também tem – principalmente ele – o dever funcional de preservação do sigilo.[40]

A decretação do segredo de justiça também alcança terceiros não interessados, como peritos e testemunhas. Eles devem ser notificados ou intimados, ou de qualquer forma comunicados que o processo tem trâmite sigiloso, dentro das formalidades processuais, com ciência das sanções em caso de desobediência.[41] Por fim, Luhmann[42], dentro da Sociologia do Direito, afirma:

“Nesse sentido, a estrutura da sociedade possui uma função de desafogo para os sistemas parciais formados na sociedade. Essa correlação é válida também no sentido inverso: na medida em que os sistemas na sociedade sejam capazes de suportar um ambiente mais complexo – seja por sua organização ou por amor –, a sociedade como um todo pode ganhar em complexidade e tornar possíveis formas mais variadas do experimentar e do agir (...). Sendo assim, o direito tem que ser visto como uma estrutura cujos limites e cujas formas de seleção são definidos pelo sistema social. Ele não é de nenhuma forma a única estrutura social: além do direito devem ser consideradas as estruturas cognitivas, os meios de comunicação (como, por exemplo, a verdade ou o amor), e principalmente a institucionalização do esquema de diferenciação de sistemas na sociedade”.[43]

Diante desta lição, é importante adotar critérios objetivos para a aplicação do princípio da publicidade, admitindo esta estrutura social ressaltada por Luhmann. Por exemplo, a adoção de princípios como os da proporcionalidade e razoabilidade ainda são praticados com enorme subjetividade, o que não parece a melhor solução. Certamente, ponderar princípios constitucionais e prestigiar a nova redação conferida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 é a alternativa mais segura.[44]

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