Rancière vs. Barthes: O Efeito de Realidade e a Política da Ficção
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O filósofo francês, Jacques Rancière, em seu texto O efeito da realidade e a política de ficção, contesta a interpretação estruturalista que Barthes faz do barômetro de Flaubert. Barthes usava da lógica da verossimilhança para dar sentido **aos** objetos presentes no texto. No caso da relação lógica de verossimilhança, o realismo acolhe o real, o seleciona e o reordena. O realismo surge como um substituto para o uso massivo das descrições, sendo apenas uma utilidade fútil. Rancière então questiona esse uso excessivo da descrição e usa uma nova forma de afirmar que determinado **objeto** é o real.
“A questão, então, não é somente sobre o elemento supérfluo na descrição: é sobre a própria descrição. Ela aparece como um excesso que cobre uma falta: o excesso de coisas - mais precisamente o excesso de representação das coisas - substitui um catálogo de clichês para o profuso emprego da imaginação poética; ou ela fica no caminho do enredo e embaralha suas linhas; ou, novamente, ela apaga o jogo de significação literária e opõe sua falsa obviedade à tarefa de interpretação”. (RANCIÈRE, 2010, p. 76)
Em seu texto, Rancière explica que **surge** um novo segmento estético que vem como uma nova forma de explicar a lógica realista. Esse novo seria o estruturalismo. Segundo Rancière, o estruturalismo viria como uma forma de explicar a lógica do texto realista e provar que o supérfluo não é supérfluo e que os trabalhos literários que não obedecem ao princípio estruturalista, são, mesmo assim, válidos para a análise estrutural da narrativa.
Segundo o autor, o texto de Barthes aparenta oferecer a fórmula teórica para essas críticas. Isso quer dizer que a análise da estrutura tenciona a preservar a ideia modernista da obra de arte, considerando-o como um desdobramento autônomo da sua própria necessidade interna, acabando assim **com** a velha lógica da semelhança e da referencialidade.
Essa velha lógica dá uma concepção metodizada do desprezo modernista para com objetos inúteis, que são aqueles que ficam no percurso da estrutura organizacional da obra de arte. Em outras palavras: **nada pode ser supérfluo**. Dessa maneira, o estruturalismo, como método de análise, necessita de provar que o supérfluo não é supérfluo e que os trabalhos literários que não se submetem ao fundamento estruturalista da economia são, contudo, válidos para a análise estrutural. É necessário que se dê ao supérfluo um lugar e um estatuto na estrutura.
Segundo Rancière:
“O estatuto que Barthes lhe dá é o estatuto típico que os pressupostos modernistas podem dar ao que está em excesso: o estatuto do sobrevivente. Barthes oferece duas razões para o excesso realista. Em primeiro lugar, ele dá continuidade a uma tradição que data da Antiguidade, a tradição do discurso "epidítico", no qual o objeto da descrição importa menos do que o emprego de imagens e metáforas brilhantes, exibindo a virtuosidade do autor em nome do puro prazer estético. Em segundo lugar, ele tem a função de comprovação. Se um elemento está em algum lugar apesar de não haver razão para a sua presença, isso significa precisamente que **a** sua presença é incondicional, que ele está presente simplesmente porque está presente. Assim, o detalhe inútil diz: eu sou o real, o real que é inútil, desprovido de sentido, o real que prova sua realidade por sua própria inutilidade e carência de sentido”. (RANCIÈRE, 2010, p.76)
Rancière continua argumentando que esta constatação do real parece regredir a uma divergência que estruturou a lógica da representação. Desde Aristóteles, sempre se acreditou que a ficção poética resumia-se em elaborar um enredo de verossimilhança, uma construção lógica de ações, enquanto a História apenas serviria para contar como os fatos realmente aconteceram.
Partindo dessa premissa, o efeito de realidade romperia com a lógica da representação. E isso é feito elaborando uma estratégia intermediária: conforme se apodera dos conceitos "realista" da história, agarrando-se ao real enquanto real, esse efeito produz um novo tipo de verossimilhança, oposta à clássica.
Dessa forma, segundo o texto de Rancière, Barthes afirma que esta nova verossimilhança se torna o centro de um fetichismo do real, característico da cultura midiática e exemplificado pelos noticiários, pela fotografia, pelo turismo devotado a monumentos e lugares históricos e outras coisas.
Novamente voltando ao texto de Barthes, Rancière afirma que:
“Creio que uma análise mais detalhada do "monte piramidal de caixas" sobre o velho piano poderia ter oferecido um terceiro termo que talvez rompesse a oposição, simples demais, entre racionalidade funcional da estrutura narrativa e singularidade absoluta. Pretendo mostrar que o "ocioso cada dia" do romance realista é o lugar e o momento de uma bifurcação de momentos muito mais radical do que a bifurcação de caminhos e linhas narrativas apreciada por Borges, e que o foco no efeito de realidade perde de vista a verdadeira ruptura que está no coração da ficção estética. Ele o perde porque a ideia "modernista" de estrutura ainda está de acordo com a lógica representativa que ela finge desafiar, de maneira que ela também deixa de ver a questão política envolvida no excesso "realista".”. (RANCIÈRE, 2010, p.77)
Essa questão de oposição entre estrutura e o ocioso ou as inúteis notações do real, traz à tona uma crítica muito mais antiga à ficção realista, crítica essa feita por muitos críticos, a maioria deles reacionários, no tempo de Flaubert. Esses críticos já estavam chamando a atenção para a descrição extensa de detalhes que preenchiam seus romances e caracterizavam mais amplamente a literatura contemporânea.
Rancière afirma que outro crítico reacionário expôs a base social da poética representativa, ao questionar se aquilo que escreviam era **democracia na literatura ou literatura na democracia**.
A justificativa para isso é que eles se referiam a pessoas cujas vidas **eram** insignificantes e essas pessoas insignificantes superlotam todo o espaço presente e não permitem, nem deixam espaço para que outros personagens, mais interessantes e harmoniosos façam parte do primoroso desenvolvimento do enredo. Isso é claramente o contrário do romance tradicional, o romance aristocrático, onde apenas a classe social mais rica se beneficiavam do espaço criado.
“O crítico reacionário revela, com franqueza, a base social da poética representativa: a relação estrutural entre as partes e o todo fundamentava-se numa divisão entre as almas da elite e as das classes baixas. Quando essa divisão desaparece, a ficção se entope de eventos insignificantes e de sensações de todas aquelas pessoas comuns que ou não entravam na lógica representativa, ou entravam nos seus devidos lugares (inferiores) e eram representadas nos gêneros (inferiores) adequados à sua condição. Isso é o que a ruptura da lógica de verossimilhança quer dizer”. (RANCIÈRE, 2010, p. 78-79)
Jacques Rancière ainda afirma em seu ensaio que, quando Barthes associa a lógica com a velha oposição aristotélica entre poesia e história, ele ignora o fato de que essa distinção poética formal também era uma distinção política.
“A poesia era definida como uma concatenação de ações em oposição à mera sucessão histórica de fatos. Mas "ação" não é o mero fato de fazer algo. A ação é uma esfera de existência. Concatenações de ações só poderiam dizer respeito a indivíduos que viviam na esfera da ação, que eram capazes de conceber grandes planos e de arriscá-los no confronto com outros grandes planos e com os golpes do destino. Elas não poderiam se referir a pessoas que estavam confinadas à condição da vida nua, devotadas à única tarefa de sua reprodução infinita. Verossimilhança não é somente sobre que efeito pode ser esperado de uma causa; ela também diz respeito **ao** que pode ser esperado de um indivíduo vivendo nesta ou naquela situação, que tipo de percepção, sentimento e comportamento pode ser atribuído a ele ou ela”. (RANCIÈRE, 2010, p.79)
Se pensarmos através de outro ponto de vista, a questão da ficção possui dois outros aspectos enredados entre si. Segundo Rancière, a ficção expressa uma determinada combinação de eventos, mas também expressa a relação entre um mundo referencial e mundos alternativos.
Mas essa relação vai além de ser uma questão entre o real e o imaginário. Isso é **uma** questão de uma distribuição de capacidades de experiência sensorial, partindo da premissa de vivência de cada indivíduo, suas experiências e até onde estão abertos a revelar a outros indivíduos seus comportamentos, gestos, pensamentos e sentimentos.
É usando desse argumento que Barthes se refere ao conto Um coração simples, de Flaubert. O barômetro citado no conto não existe para comprovar que o real é o real. A questão ali presente não é o real, mas sim a vida. Mais precisamente, o momento em **que** a vida assume, provisoriamente, a **responsabilidade** por uma série de eventos sensorialmente apreciáveis que merecem ser relatados.
O ocioso barômetro expressa uma poética da vida ainda desconhecida, manifestando a capacidade de qualquer um (por exemplo, da velha empregada de Flaubert) de transformar a rotina do dia a dia na profundeza da paixão, seja por um amante, um senhor, uma criança, seja por um papagaio. O efeito de realidade é um efeito de igualdade. Mas a igualdade não significa somente a equivalência entre todos os objetos e sentimentos descritos pelo romancista. Não significa que todas as sensações são equivalentes, mas que qualquer sensação pode produzir em qualquer mulher pertencente às "classes mais baixas" uma aceleração vertiginosa, fazendo-a experienciar as profundezas da paixão. (RANCIÈRE, 2010; p.79)
Rancière afirma que o problema do chamado Efeito do real é que a “imagem” (ou descrição do objeto) é inserida **na** narrativa. Ele parte do pressuposto que, na “democracia no romance realista, é a música da igual capacidade de qualquer um de experienciar qualquer tipo de vida” (RANCIÈRE, p.80).
“Este é, creio, o problema realmente em discussão no chamado efeito de real. A análise de Barthes não leva em consideração a questão política porque, na minha opinião, a ideia de estrutura que sustenta sua investigação sobre o estatuto do "real" na literatura está de acordo com a ideia de estrutura implicada na lógica representativa: a estrutura como arranjo funcional de causas e efeitos que subordina as partes ao todo”. (RANCIÈRE, 2010; p.80)
Rancière finaliza seu ensaio com algumas conclusões das análises feitas por ele sobre a ideia de modernidade artística que reafirmou a elaboração do conceito de efeito de real. Segundo ele, essa elaboração instituiu uma nova concepção de modernidade artística, que passou a ser usada como estratégia de eliminação, rejeitando todo o excesso de realismo presente nas narrativas, com as limitações da semelhança.
Segundo o autor, o cerne do problema do realismo não era o excesso de coisas, mas sim a quebra com a lógica da ação, já que a lógica causal entrava, dessa maneira, em contradição. Para Rancière, essa autocontradição da lógica artística e da resposta política poderia ser encontrada em uma estratégia de subtração.
“Ao contrário, o que ela requeria era uma estratégia de adição, excedendo o excesso realista, o que significa dizer trazendo à completude a auto-anulação da lógica causal. O que essa completude implicava era uma forma de coexistência das experiências sensoriais que absorvesse tanto o excesso da paixão plebeia como o excesso do devaneio plebeu, uma forma de conexão universal das experiências libertadas de qualquer enredo de causalidade”. (RANCIÈRE, 2010; p. 80-81)
O efeito do real descrito por Barthes nada mais seria do que um **efeito de igualdade** (um dos principais conceitos pregados por Rancière). Essa igualdade se daria no modo de existência, já que segundo Rancière, não é possível distinguir as grandes almas que sentem, pensam, **compreendem**, ou simplesmente entendam os indivíduos em sua mais crua representação.
Em seu ensaio, Rancière cita Madame Bovary, Felicité e um barômetro. Para ele tudo isso se encontra correlacionado e seriam a personificação de uma vida muito grande. O barômetro de Flaubert, por exemplo, **representaria** um determinado lugar na representação estruturalista que dava, precisamente, lugar às coisas e às palavras, o que se caracterizava pela exibição de um deslocamento, correspondente ao que Rancière chamava de **democracia das coisas mudas**.
O barômetro de Flaubert, citado tanto por Barthes quanto por Rancière, legitima essa quebra de paradigma do regime representativo para o regime estético (ou seja, regime político) da arte da literatura. Segundo Rancière, isso seria a compreensão do que falta na análise de Barthes.
Rancière finaliza seu ensaio afirmando que o primeiro texto citado trata-se de um Barthes não muito politizado, já que o texto por ele escrito e estruturalista é reduzido a operações internas próprias **às** concepções modernistas da literatura.
Para Rancière, o estruturalismo não serve para libertar o texto, apenas isola o texto sobre ele próprio, paralisando assim todo dado político real. Barthes é analisado por Rancière em seu momento estruturalista como se fosse um agente funcionalista do texto, que utiliza o efeito de real para “denunciar” a ordem social implicitamente descrita pelo realismo de Flaubert.
Rancière entende que Barthes se coloca como membro de uma tradição crítica que pareceu, à primeira vista, progressista, mas que só contribuiu para isolar o autor e fez com que ele próprio, Rancière, se **tornasse** impulsor de uma democracia.