Reforma Agrária no Brasil: Desafios, Promessas Não Cumpridas e o Futuro da Soberania Alimentar
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Como o senhor vê o processo de Reforma Agrária atual?
Ariovaldo Umbelino:
A Reforma Agrária hoje, do ponto de vista como está posta no plano governamental, precisa ter dois pontos destacados. A primeira é que o governo atual, no primeiro mandato, por pressão dos movimentos, fez o segundo Plano Nacional de Reforma Agrária e se dispôs a assentar, em quatro anos, 400 mil famílias e no quinto ano mais 140 mil famílias. Isso daria, em cinco anos, portanto, 540 mil famílias. Entretanto, o Incra não cumpriu essa meta, embora tenha divulgado que fez assentamentos superiores a essa meta. Na realidade, os dados que o Incra divulga são relativos à relação de beneficiários da Reforma Agrária emitidas. Essas relações são emitidas tanto para os assentados novos como para a regularização fundiária e reconhecimento de assentamentos antigos, para que as famílias tenham acesso ao Pronaf. Além disso, nessa relação, também estão inclusas as emissões feitas aos quilombolas, as demarcações de terras extrativistas e os reassentamentos de atingidos por barragens. Tanto a regularização fundiária quanto a reorganização fundiária e os reassentamentos não são Reforma Agrária.
Reforma Agrária é aquele ato em que o Incra desapropria terras ou usa terras públicas disponíveis e faz assentamentos novos. Isto é Reforma Agrária, e o Incra não faz essa separação, e sim junta todos os dados e divulga um número que não condiz com a realidade. Se fôssemos fazer a desagregação desses dados que o Incra divulga, apenas 180 mil famílias de fato foram assentadas em processo de Reforma Agrária. O que estou querendo dizer é que o governo atual não fez a Reforma Agrária que prometeu. Ao mesmo tempo, estamos diante de um processo em que o governo não manifestou qualquer disposição de fazer um terceiro plano nacional de Reforma Agrária. Resta, evidentemente, aos movimentos sociais, ação e política de pressão para que o governo retome esse processo. Inclusive, o governo atual foi mais ainda adiante: ele não só não fez a Reforma Agrária como passou a privilegiar a regularização fundiária, ou seja, a concessão de terra aos grileiros na Amazônia Legal. Um contrassenso a todo programa político elaborado no âmbito do Partido dos Trabalhadores, que nunca defendeu a concessão de terras aos grileiros.
Como sanar o problema da distribuição de terras?
Ariovaldo Umbelino:
A Constituição Brasileira é clara, límpida. A propriedade privada da terra está subordinada à sua função social. Isto quer dizer o seguinte: a propriedade privada da terra não é uma propriedade como outra qualquer. Quando uma pessoa tem um automóvel, pode deixá-lo na garagem da sua casa apodrecendo e ninguém poderá falar nada. É um direito dela, que tem o direito absoluto sobre aquela propriedade, evidentemente, desde que não esteja atrapalhando terceiros. Com relação à propriedade privada da terra, não, pois não é uma propriedade absoluta. Ou seja, está submetida ao seu uso produtivo e ao fato de essa produção ser feita respeitando as leis trabalhistas e as leis ambientais, e não se produzir produtos com interesse em tóxicos, que estão definidos na Constituição como situação em que a propriedade não cumpriria a sua função social. Nós temos no Brasil hoje, do ponto de vista das grandes propriedades, 120 milhões de hectares de grandes propriedades, as quais, no cadastro do Incra, já estão identificadas como improdutivas, ou seja, que não cumprem a sua função social. Qual é a obrigação constitucional do Incra? Desapropriá-las e destiná-las à Reforma Agrária, para que cumpram sua função social.
Ao mesmo tempo, há, no Brasil, cerca de 250 milhões de hectares de terras apropriadas indevidamente. No Rio Grande do Sul, praticamente metade do município de Bagé, por exemplo, está nas mãos de pessoas que não têm documentos. Isso está registrado porque os próprios proprietários declararam. Há, no Rio Grande do Sul, cerca de seis milhões de hectares de terras devolutas, ou seja, aqueles que as controlam não têm documentos sobre elas. A função do Estado é fazer com que o preceito constitucional da função social da propriedade privada da terra seja cumprido. É evidente que é função do Estado promover a redistribuição dessas terras através de programas de Reforma Agrária.
Como o senhor vê a atuação do MST, atualmente?
Ariovaldo Umbelino:
O MST, como movimento social de luta pela Reforma Agrária e pelo acesso à terra, educação, saúde e tudo aquilo que qualquer cidadão por direito deveria ter, responde aos seus objetivos. Se existe Reforma Agrária no Brasil, ela foi fruto dessa luta histórica nesses 25 anos de existência do MST. Este é um movimento social de importância política no Brasil porque forçou o Estado a colocar na agenda política a realização da Reforma Agrária. Então, ele tem a sua importância de natureza política porque cobra que o direito daqueles que não têm terra se faça no âmbito do Estado. Portanto, trata-se de um movimento social de grande importância para o processo de democratização do acesso à terra e da própria propriedade privada de terra no Brasil.
Análise das experiências de assentamentos da Reforma Agrária
Ariovaldo Umbelino:
Em primeiro lugar, é preciso dizer que uma política de Reforma Agrária tem dois pilares principais: o primeiro pilar é aquele relativo ao acesso à terra, que nós chamamos de política fundiária, ou seja, criar as condições para que haja acesso à terra, sobretudo às terras de qualidade e, evidentemente, isso não aconteceu, de maneira geral, no Brasil, porque, via de regra, os assentamentos foram feitos em áreas distantes, em solos não propícios. O segundo é o resultado econômico. Do ponto de vista da Reforma Agrária, a grande maioria desses assentados saiu de uma condição para uma condição de pelo menos ter acesso à produção de alimentos. Desse ponto de vista, a Reforma Agrária cumpre a sua função social. Ela só não é mais progressista porque a política agrícola realizada pelos diferentes governos não tem permitido.
Análise da ajuda financeira do governo Lula ao agronegócio
Ariovaldo Umbelino:
Eu analiso da forma como a realidade indica, ou seja, o governo atual, do presidente Lula, fez a preferência pelo agronegócio. Assim, ele não fez a opção preferencial pela Reforma Agrária ou pelos movimentos sociais. Por isso, continua fazendo concessões de recursos financeiros públicos para esse setor, que tem sido contemplado com fatias expressivas do orçamento. O governo atual continua realizando a sua política de apoio ao agronegócio, que, no meu ponto de vista, pode colocar o país, mais cedo ou mais tarde, diante da questão da insegurança alimentar. Isso porque, do total da famosa safra de grãos, vamos verificar que 80% ou pouco mais é produção de soja e milho, que não são produzidos para serem consumidos no Brasil, mas sim para exportar. Enquanto isso, a produção de arroz, feijão e trigo no Brasil não cresce desde 1992. O que mostra que a sociedade brasileira está comendo a safra que está sendo plantada e colhida. Isso é um risco muito grande, ou seja, de perder a soberania alimentar no nosso país. É evidente que essa política atual é suicida.
Eu gostaria de retomar a questão central que envolve o debate da Reforma Agrária, que é o fato de que 1/5 das terras do Brasil não pertencem àqueles que as cercaram. Em geral, são esses que estão em terras que não lhes pertencem, do ponto de vista legal, e que, no entanto, se agarram ao direito de fazer críticas às ações dos movimentos sociais, que não têm por parte do governo atual o cumprimento das ações da Reforma Agrária. Então, é preciso que a sociedade brasileira tenha consciência de que a Reforma Agrária é necessária e só ela irá garantir ao país a produção de alimentos em quantidades, de modo a que nós tenhamos, simultaneamente, segurança e soberania alimentar. Além disso, é com a Reforma Agrária que os países desenvolvidos conseguiram chegar às condições de soberania alimentar. É evidente que o Brasil tem uma estrutura fundiária altamente concentrada nas mãos das elites que controlam terras que não lhes pertencem, o que é um contrassenso e uma ilegalidade denunciados pelos movimentos sociais.