Sociologia do Direito: Perspectivas Clássicas e Modernas
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A sociologia do direito é o estudo do direito na sua relação com o social. Sistema dentro do qual a lei está localizada. Especificamente, discute os fatores sociais que formam a lei; nomeadamente, os interesses políticos, econômicos e culturais que definem a lei. Também aborda os efeitos sociais ou implicações de leis específicas e sistemas legais, quer sejam intencionais ou não intencionais.
O núcleo teórico clássico da sociologia do direito é constituído pelas teorias dos três pais fundadores da sociologia clássica: Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim. Esses três sociólogos clássicos representam diferentes abordagens teóricas e epistemológicas em sociologia (conflito, interpretação e funcionalista, respectivamente). Ao mesmo tempo, todos eles trataram de leis e sistemas jurídicos em suas pesquisas. Comparando e contrastando seus escritos em lei, entendemos melhor as nuances de suas perspectivas teóricas (que aplicam na conceitualização da lei), suas diferenças, complementaridades e possíveis lacunas na compreensão do direito na sociedade. Em última análise, chegamos a apreciar suas respectivas teorias no trabalho no estudo de um particular fenômeno social, isto é, lei.
Restringir a compreensão desse vasto campo para apenas uma abordagem dos três teóricos pode ser problemático, pois isso permite uma compreensão estreita dos fatores sociais inerentemente vinculados ao discurso. Assim, ao mesmo tempo, essa tese busca sintetizar as teorias do direito dos três sociólogos clássicos com a intenção de criar uma compreensão mais abrangente.
Max Weber
Max Weber é a referência teórica clássica da Sociologia do Direito. Diferentemente das perspectivas teóricas de Émile Durkheim e de Karl Marx, que tomaram o Direito como epifenômeno dos seus temas centrais de análise, a moral e a economia, respectivamente, Max Weber foi o único dentre os fundadores da disciplina a tomar o Direito como tema específico de sua análise sociológica. A tese fundamental de seus escritos sobre o Direito, especialmente a sua Sociologia do Direito, é: "A ideia dominante nessa análise: expor as fases e os fatores que contribuíram para a racionalização peculiar à civilização ocidental".
É bastante conhecida e dispensa delongas a interpretação de que a Sociologia do Direito de Max Weber ilustra teórica e empiricamente uma das teses centrais de sua Sociologia geral a respeito do processo de racionalização das relações sociais como elemento distintivo da cultura ocidental. Entretanto, algo que parece comum à maioria dessas interpretações é a dupla e equivocada suposição de uma perspectiva evolucionista no método historicista de Weber, bem como a ideia de que a racionalização que ele descreve tem um sentido teleológico, i.e., significa um processo progressivo de avanço da Razão.
Tendo sido socializado em um ambiente intelectual europeu continental, na transição dos séculos XIX e XX, não é difícil identificar nesse autor alguns traços do positivismo, paradigma dominante na comunidade científica europeia naquele momento.
Em primeiro lugar, a melhor compreensão da Sociologia do Direito de Max Weber deve começar, creio, pelo entendimento do que seja a perspectiva historicista utilizada por ele na explicação do fenômeno do Direito. Antes de tudo: é necessário afastar qualquer similaridade dessa perspectiva historicista com a concepção hegeliana de História, também presente, com uma outra formulação, na teoria de Karl Marx. Nessas perspectivas, os acontecimentos e os fatos "históricos" são interpretados como episódios que convergem para a realização de um sentido projetado e deduzido. Em Hegel, a História é alienação do Espírito, processo progressivo de revelação da essência nos acontecimentos e fatos marcantes da trajetória humana. Em Marx, a História é revelação de um sentido visado pelos seus sujeitos: as classes sociais.
Para Weber, em posição diametralmente oposta, inexiste nem um sentido imanente à história ou revelado pela História nem, tampouco, esse sentido pode ser capturado pelo método científico. Na verdade, a própria ciência é desprovida de um significado ou sentido último. Em suas palavras: "Nenhuma ciência é absolutamente livre de pressuposições e nenhuma ciência pode provar seu valor fundamental ao homem que rejeita essas pressuposições" (WEBER, 1982, p. 181).
É preciso, destarte, entendermos que o historicismo em Weber não é um simples pressuposto teórico, mas é, principalmente, um pressuposto de natureza metodológica, cuja função central, na análise, é prover a teoria generalizante dos sociólogos com conceitos e noções capazes de captar os aspectos particulares, i.e., empíricos, das ações sociais concretas.
Em linguagem contemporânea, a maneira como Weber trabalha metodologicamente o conceito de historicidade tem a ver com a forma peculiar como ele articula as perspectivas micro e macrossociológica em sua análise: enquanto ciência, qualquer ciência, a Sociologia deve ser capaz de produzir seu conhecimento a partir de um conjunto normativo de procedimentos e controles e deles retirar conceitos e modelos operativos para entender a ação social. No entanto, a produção de categorias analíticas (generalizantes) só pode ser feita a partir do exame de casos particulares não redutíveis, por princípio, uns aos outros.
Em sua análise do Direito, Weber procura combinar, então, em seu método de investigação, o racionalismo científico típico, classificatório e generalizante, mais identificado com as ciências naturais, com a perspectiva historicista, que captura os movimentos particulares e singulares que guardam a integridade de cada fenômeno social concreto.
Do ponto de vista epistemológico, igualmente, a reflexão de Weber sobre o historicismo nada tem a ver com a concepção idealista ou materialista da História. Na verdade, essa perspectiva historicista reflete o posicionamento do autor frente aos debates acadêmicos da Alemanha de sua época, entre os filósofos Dilthey, Windelband e Rickert, acerca da natureza da distinção entre as ciências naturais e as ciências históricas ou da cultura (FREUND, 1987, p. 32-35). Diferentemente de Dilthey, que considerava que o objeto das ciências naturais emprestava-lhes um estatuto diferenciado em relação às ciências do espírito ou da História, e de Windelband e Rickert, que localizavam essa diferença nos procedimentos metodológicos, Weber defende que as condições de produção do conhecimento são indistintas e que uma boa teoria científica deve fazer progredir o saber e não prestar devoção a algum pretenso ideal de conhecimento. Sendo autônomas todas as ciências, em virtude de seus próprios pressupostos, nenhuma serve de modelo às outras. Nesse sentido, o historicismo é um método adequado para a análise dos fenômenos sociais porque torna evidentes os nexos causais entre a ação e os significados atribuídos a ela pelos agentes sociais. Isso me parece uma declaração bastante contundente contra a concepção sociológica positivista de algumas perspectivas oitocentistas que tinham o propósito de reduzir as Ciências Sociais às ciências da natureza.
A ênfase nesse aspecto metodológico e epistemológico da Sociologia do Direito de Weber é para colocarmos em devida suspeição algumas interpretações que estão enxergando "História" onde está escrito, em realidade, "historicidade". Esse tipo de confusão faz que alguns intérpretes da Sociologia do Direito de Weber enfatizem o conceito de trajetória histórica e obscureçam, em contrapartida, a noção, mais consistente com a perspectiva weberiana, de singularidade histórica.
Os equívocos desse tipo de interpretação são agravados, ao meu ver, com uma segunda confusão que se faz com a ideia sintetizada na expressão "processo de racionalização do Ocidente", do qual fala Weber, assumido como leitmotiv da sua Sociologia do Direito. De uma maneira geral, as interpretações predominantes subentendem o processo de racionalização como um processo de desenvolvimento da Razão. É preciso de pronto dizer que a racionalização em Weber é apenas uma fração do processo mais amplo de intelectualização: "O progresso científico é uma fração, a mais importante, do processo de intelectualização que estamos sofrendo há milhares de anos [...]" (WEBER, 1982, p. 165).
"Racionalizar" em Weber significa entender de maneira abstrata um fenômeno, reproduzir mentalmente, reconstruir intelectivamente um ato ou uma situação. Não há, portanto, qualquer teleologia na concepção weberiana de razão. Agir racionalmente não significa, para Weber, agir em conformidade com os fundamentos últimos da Razão. A racionalidade é apenas um método, entre tantos, utilizado pelos indivíduos para orientar suas ações. Portanto, quando o autor fala em processo de racionalização das sociedades ocidentais, ele fala da crescente importância para os indivíduos dessas sociedades de produzirem explicações para os fenômenos de acordo com princípios lógicos e abstratos, i.e., racionais.
Como Weber expressou em seu clássico Ciência como vocação, conhecer racionalmente os fenômenos, ser capaz de aplicar o conhecimento racional aos mais distintos processos e operacionalizações, "desencantar o mundo", segundo a sua célebre formulação, não significa necessariamente conhecer mais sobre esse mundo: "A crescente intelectualização e racionalização não indicam [portanto] um conhecimento maior e geral das condições sob as quais vivemos" (ibidem).
É notória e conhecida a concepção algo cética de Weber a respeito da cognição humana, de explícita influência kantiana, a respeito daquilo que podemos conhecer e das condições em que isso ocorre. Em suma, dada a natureza interpretativa de todo conhecimento, não é possível um conhecimento perfeito e incontrastável de todas as coisas; o conhecimento é sempre provisório e precário, porque necessariamente autoral e subjetivo.
Dessa maneira, nosso ponto de partida para a análise da Sociologia do Direito de Weber pode muito bem começar com a interpretação mais tradicional de que a sua hipótese central está em demonstrar o processo de construção do Direito como capítulo destacado do processo de racionalização das sociedades ocidentais. Entretanto, devemos abandonar desde já as ideias de que processo de racionalização significa aproximar-se progressivamente da Razão e de que historicidade significa realizar o sentido último da História. Não há, rigorosamente, em Weber, uma teoria da História nem a suposição de algo semelhante a alguma lei de desenvolvimento histórico das sociedades humanas rumo à racionalização total das relações sociais.
Minha proposição para interpretação da Sociologia do Direito de Weber é aquela que considero mais fiel ao espírito de sua Sociologia compreensiva: é a de que o autor, em Economia e sociedade, descreve o processo peculiar de formação dos sistemas jurídicos ocidentais, a sua historicidade, portanto, a partir da combinação e recombinação especiosa de diversos componentes da formação cultural das sociedades do Ocidente, dentre os quais avulta a ação racional. Mas, insisto, a razão instrumental descrita por Weber é o resultado de uma construção interindividual ("intersubjetiva"). A racionalidade é por assim dizer uma comunicação, um processo pelo qual eu torno "evidentes" para uma pluralidade de indivíduos as conexões que eu estabeleci entre determinados objetivos e os meios de alcançá-los. A ação racional, diz Weber (1999, p. 4), é aquela em que os indivíduos procuram explicitar as conexões de sentido entre os seus desempenhos acionais e os seus objetivos assumidos como tal. Por este motivo, a ação orientada racionalmente por um fim distingue-se dos demais tipos de ações orientadas pela intuição ("emocional", "receptivo-artística"). Toda racionalidade é, nesse sentido, contextual e não manifestação de essências. Daí a compreensão de Weber de que uma ação racional, por exemplo, um sistema político orientado por procedimentos racionais, possa servir a uma finalidade substantivamente irracional, p. ex., possa servir a princípios de um ideal de superioridade racial1. Weber descreve a construção da razão como um artesanato. Sua ideia, enfim, é de que a razão é extraída do fluxo irracional de todas as coisas, em uma aproximação novamente com os princípios kantianos da razão: "Vivemos como os antigos, quando seu mundo ainda não havia sido desencantado de seus deuses e demônios, e apenas vivemos num sentido diferente" (WEBER, 1982, p. 175).
Critical Legal Studies
Inúmeras são as discussões acerca do papel do direito na sociedade. Destaca-se aqui, aqueles debates ocorridos no âmbito do **Critical Legal Studies** (CLS). Para os autores desse movimento o direito nada mais é do que um meio de justificar as situações de dominação e opressão existentes na sociedade. Os estudiosos desse movimento se caracterizam por pretenderem desconstruir a noção de direito, expondo as suas contradições internas e suas debilidades. Adaptando ideias provenientes do pensamento marxista e da Escola de Frankfurt, os integrantes desse movimento teórico tentam demonstrar como as relações de poder afetam o direito. Para eles, a ideia da Escola de Frankfurt de uma cultura ocidental de dominação e supressão é essencial para explicar os mecanismos legitimação que o direito usa.
É corrente no âmbito dos estudos acerca do direito, discussões sobre a relação entre direito e valores morais e se esses afetam ou não o processo decisório dos juízes perante o caso concreto. Para autores positivistas como **Hart**, os juízes não possuem discricionariedade, pois existem inúmeros instrumentos, como a analogia, que permite fundamentar a decisão dos tribunais com base no direito vigente. **Ronald Dworkin**, por sua vez, acredita que as normas jurídicas não são suficientes para os casos mais difíceis, o que levará o juiz a buscar nos valores morais da sociedade a melhor solução para o caso em questão. Para o **Critical Legal Studies**, os juízes decidem com base em seus valores morais, acabando por perpetuar uma estrutura que apoia a hierarquia social vigente e mantém todos os setores historicamente marginalizados, como o das mulheres, em uma posição de desvantagem e desigualdade.
Uma das vertentes do CLS, o **Feminist Legal Studies**, acredita que o direito tal como é hoje, acaba por manter a submissão das mulheres aos homens, conferindo um tratamento injusto e que não leva em conta as particularidades femininas. Em relação às pesquisas científicas, existem inúmeras discussões sobre os estudos conduzidos por teóricos do Feminist e do Critical Legal Studies. Há o questionamento sobre se o conhecimento produzido por essas pesquisas seria objetivo e imparcial, pois, ao inserir valores no direito, configurariam uma pesquisa engajada e parcial, o que prejudicaria na descoberta da dita verdade científica. Porém, algumas autoras feministas sustentam que nenhuma pesquisa é verdadeiramente neutra, e que ao usar de métodos como a pesquisa empírica, de modo adequado, é possível aferir, de forma imparcial e válida, se a conclusão alcançada é verdadeira ou não.
O presente artigo busca expor a discussão sobre o Critical Legal Studies e a influência da inserção de valores morais na pesquisa científica para a produção de um conhecimento válido, principalmente quando se fala de uma pesquisa voltada para a teoria feminista do direito.
Niklas Luhmann
**Niklas Luhmann** formou-se inicialmente em direito. Antes de iniciar uma carreira de sociólogo, trabalhou vários anos como jurista na administração pública e, mais tarde, como investigador em temas jurídicos num instituto de ciências administrativas. Este percurso (I) explica que o direito tenha ocupado um lugar destacado nas suas reflexões teóricas. Mais, toda a sua teoria geral da sociedade é marcada pelo facto de o direito ter sido um dos seus principais objetos ao qual foi aplicada. Reveste, logo, particular interesse, na abordagem deste autor, a análise da sua conceptualização do direito (II). Esta, no entanto, evolui consideravelmente ao longo dos anos. Uma evolução que revela o carácter dinâmico do pensamento de Luhmann, uma característica que tende a ficar ocultada pela amplitude da obra e o rigor da argumentação. Ao dar conta desta evolução, somos também conduzidos a refletir, em termos mais gerais, sobre o estatuto das diferenças entre os trabalhos de um mesmo autor, uma questão que tem sido nalguma medida negligenciada, talvez sob a pressão das necessidades do ensino. A discussão da obra de Luhmann constitui uma boa oportunidade de a aprofundar (III).
Recordemos, em primeiro lugar, que Luhmann iniciou a sua carreira de sociólogo relativamente tarde. Depois da licenciatura em direito, em 1949, trabalhou primeiro, durante cerca de dez anos, na administração pública, sucessivamente nos serviços de um tribunal administrativo (onde participou na reorganização do sistema de referência das sentenças) e no Ministério da Educação e Cultura da Baixa Saxónia (onde tratou de pedidos de indemnização consecutivos ao período nazi). Já nessa fase, no entanto, estava interessado, mais do que nesta atividade administrativa em si, na reflexão mais abstrata sobre o fenómeno administrativo em geral, uma reflexão, aliás, de inquestionável pertinência numa altura em que se tratava de reconstruir o Estado alemão depois da Segunda Guerra mundial. Este interesse concretizou-se, por um lado, em contribuições para uma revista de ciência administrativa e, mais discretamente, no desenvolvimento de um ficheiro de trabalho, organizando os seus apontamentos de reflexão, os seus mais tarde famosos Zettelkästen. A qualidade deste trabalho analítico chamou a atenção de dois professores que tiveram um papel determinante na entrada de Luhmann no mundo das ciências sociais. Carl Hermann Ule convidou-o para o Instituto Superior de Ciências Administrativas de Speyer, onde trabalhou durante cinco anos como investigador. Por sua vez, Helmut Schelsky animou-o a doutorar-se para poder ingressar na universidade e convidou-o, poucos anos depois de Luhmann ter cumprido estas provas, para a Universidade de Bielefeld, em 1969. Com a preocupação de se situar num contexto intelectual suficientemente aberto, Luhmann posicionou-se explicitamente, logo nestes anos de transição da administração para a investigação, como sociólogo. Não quis limitar-se a estudar de fora a atividade jurídica e administrativa. Quis estudá-la no âmbito de um quadro conceptual à partida mais abrangente. Como se sabe, esta estratégia intelectual inspirou-se nomeadamente em Talcott Parsons, junto de quem Luhmann estudou durante alguns meses no início dos anos da década de 60. Afirmou-se na lição inaugural que proferiu no início da sua carreira professoral, em Münster em 1967, e que intitulou “Iluminismo sociológico”, assim como, nomeadamente, pela sua participação, em 1968, no congresso da Associação alemã de sociologia, onde apresentou a conferência que esteve na base do debate que travou pouco mais tarde com Jürgen Habermas.
Ao longo desta transição continuou, no entanto, a dedicar-se em particular a temas jurídicos. Vários conceitos essenciais para o seu futuro trabalho teórico surgiram no contexto da elaboração de um estudo sobre os direitos fundamentais. A obra que mais polémica suscitou, consagrando-o como um dos autores de referência na sociologia alemã, foi Legitimação pelo procedimento, dedicada às estruturas das atividades políticas, administrativas e judiciais nas sociedades modernas.
A partir destes anos, afirmou-se claramente como teórico generalista, publicando os sucessivos volumes intitulados: Iluminismo sociológico. Não deixou, porém, de se interessar pelo direito, que reconhecia como um elemento autónomo da realidade social. Esta autonomia explica o seu empenho no desenvolvimento de uma subdisciplina da sociologia, a sociologia do direito. Produziu o que se poderia qualificar de manual teórico desta disciplina, o seu livro Rechtssoziologie, e participou no lançamento da revista alemã de sociologia do direito, a Zeitschrift für Rechtssoziologie, na qual publicou vários artigos. Quando, mais tarde, empreendeu a sua linha de trabalhos sobre os vários sistemas sociais, iniciada pelo livro introdutório Soziale Systeme, dedicou um volume próprio ao direito, Das Recht der Gesellschaft (O Direito da Sociedade), ao lado dos volumes sobre a economia, a ciência, a arte, a política, a religião, o sistema educativo e a sociedade em si.
II
Niklas Luhmann publicou numerosos livros sobre o direito, entre os quais se destacam os dois que acabam de ser referidos; a Sociologia do Direito e O Direito da Sociedade. A Sociologia do Direito retoma e sistematiza reflexões que surgem ao longo de várias das obras anteriores, em particular Grundrechte als Institution (Direitos fundamentais como instituição) e Legitimation durch Verfahren (Legitimação pelo Procedimento). Em 1981, organizou uma coletânea de artigos sobre o direito, Ausdifferenzierung des Rechts (A diferenciação do direito). Ao reunir este conjunto de artigos, assinalou implicitamente que os seus trabalhos recentes o conduziram a uma reapreciação em profundidade do fenómeno jurídico.
Este passo qualitativo foi anunciado de maneira mais explícita em 1983. Com efeito, reeditou-se nesse ano a Sociologia do Direito e Luhmann, embora sem querer rever o texto no seu conjunto, redigiu um novo capítulo final. Existem, desta maneira, duas conclusões diferentes deste livro, uma de 1972 – “Perguntas para a teoria do direito” – e outra de 1983 – “Sistema do direito e teoria do direito”. Caso único, salvo erro, na sua obra, Niklas Luhmann explicita aqui uma evolução, ao permitir uma comparação linear entre dois momentos do seu pensamento.
Mais tarde, Luhmann publicou ainda numerosos textos sobre o direito, documentando uma evolução que não parou até à sua morte. Entre estes, o livro O Direito da Sociedade retoma várias das ideias lançadas nos restantes artigos sobre este mesmo tema, mas o propósito principal do livro é contribuir para uma comparação entre sistemas sociais e para o desenvolvimento de uma teoria geral dos sistemas sociais.
Antes de abordar as concepções do direito defendidas por Luhmann nestas obras, convém sublinhar a evolução das suas motivações teóricas. Existe, convém recordá-lo, uma inegável continuidade: a sua preocupação central é o melhor entendimento da sociedade moderna, o que passa por uma conceptualização apropriada da sua característica principal: a **diferenciação funcional**. Evoluem, em contrapartida, as finalidades mais concretas do seu trabalho académico. Uma evolução no sentido de um progressivo distanciamento, poderia dizer-se, em relação às práticas sociais e, talvez, de um certo desencanto. Nas obras dos anos 60, exprime a vontade de contribuir para um conhecimento da diferenciação funcional que possa, diretamente, favorecer um melhor funcionamento dos sistemas sociais. Mais tarde, afirma-se cada vez mais cético quanto a qualquer utilidade direta. Dá cada vez mais importância à finalidade primária do trabalho: conseguir uma teoria dos sistemas sociais. As esperanças anteriores transformam-se numa aposta: que esta teoria dos sistemas sociais, alcançando uma existência própria, se torne numa das instâncias onde a sociedade contemporânea, radicalmente diferenciada, possa reencontrar uma visão global de si própria. Mas uma visão entre outras, apenas uma visão, e cujos efeitos são imprevisíveis.
A primeira finalidade exprime-se da maneira mais clara em 1965. Em Direitos fundamentais como instituição, Luhmann verifica primeiro que o “pensamento estatal” (Staatsdenken), isto é, o pensamento dos que exercem responsabilidades no Estado ou são formados nesta perspectiva, se fechou face aos desenvolvimentos das ciências sociais e, nesta circunstância, afirma que «uma análise dos direitos fundamentais com os meios da teoria estrutural-funcionalista dos sistemas poderia fertilizar a dogmática dos direitos fundamentais».
Em conclusão desta mesma obra, faz um balanço das possíveis utilizações da teoria estrutural-funcionalista pela dogmática jurídica, introduzido nos seguintes termos: «(…) contradiria a intenção fundadora da nossa pesquisa aceitar aqui qualquer fusão. O aparelho conceptual da investigação sociológica, orientado para a descoberta e a comparação sistémica, tem outras tarefas do que o aparelho conceptual da dogmática, que deve facilitar e tornar previsível a tomada de decisão.
Recusar uma harmonia sem qualquer desnivelamento (stufenlose) não significa, no entanto, recusar qualquer contacto. Quem vê a complementaridade das tarefas da sociologia e da dogmática, promoverá estes contactos. São a própria especificação da função científica e a autonomia dos aparelhos conceptuais que, aqui como no caso de qualquer diferenciação, tornam os contactos possíveis e lhes dão o seu sentido».
Esta atitude ainda se exprime na conclusão da Sociologia do Direito de 1972, cujo próprio título, “Perguntas para a teoria do direito”, sugere um relacionamento direto entre as abordagens:
«A ciência do direito – nisto reside a diferença com a sociologia – é uma ciência da decisão. Daí que possa retirar da sociologia uma ajuda imediata para a decisão apenas em constelações particulares, atípicas. Mas pode, pela cooperação com a sociologia, ser conduzida a refletir a sua própria seletividade, e a entender as suas próprias decisões de princípio como resultando de uma escolha significativa (sinnvolle) entre outras possibilidades».
Já em O Direito da Sociedade (1993), afirma em termos muito mais categóricos a separação entre as disciplinas:
«Com a determinação do objeto, dá-se também, num contexto científico pluralista, a possibilidade, ou até a probabilidade de diferentes teorias, e mais ainda diferentes disciplinas, determinarem o seu objeto de maneira diferente e, por isso, não poderem comunicar umas com as outras. Falam então, mesmo que utilizem a mesma palavra – no nosso caso ‘direito’’– em coisas diferentes.
Poderão então encher-se páginas e páginas com – ‘debates’ (Auseinandersetzungen), mas sem nenhum resultado, a não ser eventualmente a melhoria das suas próprias armas. Não se fala a mesma língua (Man redet aneinander vorbei)».
Poucas linhas mais adiante, no entanto, volta a uma apreciação mais otimista:
«Talvez haja hoje um entendimento mínimo sobre o seguinte: que não vale a pena discutir sobre a ‘natureza’ ou a essência do direito, mas que a questão interessante é a das fronteiras do direito».
A estas duas finalidades correspondem duas problemáticas diferentes. Quando se trata ainda de contribuir para a percepção que os próprios juristas têm do seu trabalho, Luhmann procura dar conta do que, numa perspectiva sociológica, se revelou como a principal particularidade do direito moderno, a sua positividade.
Considera relevante, para a própria prática do direito, entender em que consiste, quais são as funções, quais são as condições de manutenção desta positividade. E, para fundamentar esta reflexão, procura reconstituir o processo histórico que conduziu a esta positividade, isto é a positivização do direito (A). Já quando o objetivo é contribuir para uma teoria geral dos sistemas sociais, trata-se, através da observação do direito, de perceber melhor em que consiste um sistema social diferenciado, e o que distingue, entre outros sistemas, o sistema jurídico.
Empreende este trabalho mobilizando o conceito de autopoiesis dos sistemas e mostrando como, num processo autopoiético, se produz a distinção entre o que é jurídico e o que não o é (B). São assim identificados os dois conceitos que, sucessivamente, vão dominar a reflexão de Luhmann sobre o direito.
A - A positivização do direito
O tema da positivização do direito surge nos primeiros trabalhos sociológicos de Niklas Luhmann. Como outros sociólogos da modernidade, de Weber a Parsons, admite que o direito desempenha nesta um papel essencial. A característica do direito moderno, que considera poder relacionar diretamente com as características da sociedade moderna, é a sua positividade.
Esta ideia central exprime-se no título de um artigo publicado em 1970: “A positividade do direito enquanto condição da sociedade moderna”. É trabalhada, também, em vários textos desta época. Depois de alusões mais breves, nomeadamente no livro Direitos fundamentais como instituição, uma primeira exposição deste tema é proposta no artigo “Direito positivo e ideologia”, publicado em 1967, precisamente no ano em que também publica o texto programático “Iluminismo sociológico” (Soziologische Aufklärung). Um capítulo de Legitimação pelo procedimento é-lhe expressamente dedicado. Mais significativamente, todo o livro Sociologia do Direito (1972) é organizado em função desta problemática. A primeira parte desta obra, conceptual e histórica, culmina com a discussão do processo de “positivização”; a segunda trata dos aspectos atuais e das potencialidades do direito positivo.
A reflexão de Luhmann sobre a positividade (Positivität) do direito, assim como sobre a evolução que conduziu a esta forma de direito, a positivização (Positivierung), apoia-se numa constatação simples. E parte da força da argumentação de Luhmann deve-se à maneira pregnante com que formula esta constatação:
«Com efeito, baseamos a solidez da validade já não numa validade superior mais sólida, mas, precisamente ao contrário, num princípio de variabilidade: o facto de que algo pode ser alterado é o fundamento de toda estabilidade e, logo, de toda validade».
«O direito vale como positivo não apenas quando a experiência jurídica (Rechtserleben) tem um acto histórico de legislação na memória – no pensamento jurídico tradicional, a historicidade do direito pode servir precisamente de símbolo da sua inalterabilidade – mas apenas quando o direito é vivido como valendo por força desta decisão, como escolhido entre várias possibilidades e, desta maneira, como alterável».
Esta constatação, a partir da qual Luhmann vai desenvolver a teoria da positividade que procurarei sintetizar a seguir, merece, em si, dois comentários. Primeiro, trata-se de um ponto de partida empírico. Quer-se dar conta de experiências que “todos nós” podemos fazer: por um lado, a experiência da validade (a lei adotada deverá, em princípio, ser cumprida); por outro lado, a da alterabilidade da lei (sabemos que várias alternativas estiveram em discussão; sabemos que, num futuro que poderá ser próximo, a lei poderá ser substituída por outra).
Poderá pôr-se este ponto de partida em causa neste mesmo plano empírico, em particular em dois aspectos: existirão pessoas que não têm uma experiência de procedimentos legislativos que lhes permita reconstituir facilmente a noção de alternativas, ou de alterabilidade; a percepção da validade poderá relacionar-se menos com a antecipação de uma alteração do que com outras razões (a pura legalidade? o reconhecimento da legitimidade de quem decidiu?).
Teremos, no entanto, que reconhecer que, embora susceptível de ser relativizado, este ponto de partida não carece de pertinência: os que não têm experiência da legislação são os que têm menos capacidade de intervenção nas dinâmicas sociais; os outros motivos em que poderíamos pensar em abstracto poder-nos-ão aparecer como mais questionáveis ainda do que o sugerido por Luhmann.
Segundo comentário: o conceito de positividade de Luhmann aproxima-se do conceito usual em ciência jurídica, mas existem diferenças importantes. Os principais pontos comuns são a referência à lei “posta” (geseztes Recht) e a noção de decisão, isto é, o acto pelo qual a lei (ou a sentença) foi estatuída. O elemento mais importante na definição de Luhmann, a “alterabilidade” do direito positivo, também se encontra nas definições do direito positivo de autores de teoria ou filosofia do direito, onde não ocupa, no entanto, uma posição tão central. Assim, Bobbio menciona a “antítese imutabilidade/mutabilidade” para distinguir o direito natural do direito positivo. Existem, no entanto, várias diferenças entre os argumentos de Bobbio e de Luhmann. A mais importante é que Bobbio se refere à evolução lenta das leis humanas no tempo pela mudança dos costumes, e não ao facto da possibilidade de alteração do direito por uma decisão atual. A problemática visada também não é a mesma: Bobbio recorda a oposição entre direito positivo e direito natural, enquanto Luhmann, como veremos mais adiante, pretende distinguir o direito positivo, moderno, de formas mais arcaicas do direito.
Finalmente, poderá sustentar-se, embora esta diferença não seja tão óbvia, que Bobbio visa uma característica intrínseca do direito, enquanto Luhmann pretende ter em conta uma experiência subjetiva que têm os destinatários do direito. Por sua vez, Latorre opõe o estudo do direito positivo ao trabalho de reforma do direito, o que sugere uma definição do direito positivo (lex lata) por oposição à lex ferenda. Aqui também, a diferença reside no ponto de vista adotado. Torres refere-se à relação entre os juristas e o direito, enquanto Luhmann utiliza uma noção mais vasta de experiência jurídica.
A partir da breve definição acima citada, convém, em primeiro lugar, precisar, em si, a noção de positividade do direito proposta por Luhmann (a). Em segundo lugar, Luhmann relaciona o direito positivizado com a sociedade moderna, numa lógica funcionalista (b). Em terceiro lugar, no plano de uma discussão mais específica, examina vários fatores que considera como tendo contribuído para que o direito possa cumprir a sua função (c).
(a) Como ficou dito, o direito positivo é o direito reconhecido como válido porque alterável. Nesta definição, a noção que carece de ser especificada é a de validade. Embora exista uma definição jurídica aparentemente simples desta noção (facto de uma norma ter carácter vinculativo, por oposição a uma norma abrogada, ou nula porque padecendo de um vício formal), Luhmann tem a preocupação de dar às suas reflexões, neste ponto crucial, bases propriamente sociológicas. Estas são-lhe fornecidas por dois raciocínios distintos.
Um primeiro consiste em dotar-se de um conceito que vai permitir uma nova definição abstrata da noção de validade, sem referência a noções jurídicas. Trata-se do conceito de “expectativa normativa”. Neste raciocínio, Luhmann parte de uma concepção interacionista das relações sociais. Poderemos falar de interação social quando o comportamento de uma pessoa (ego) é orientado pela ideia que tem do comportamento do outro (alter), e pela noção de que este comportamento de alter, por sua vez, também é orientado pela ideia que alter tem do comportamento de ego. Na formação das suas intenções de ação, ego, a todo momento, vai, simultaneamente, formar um certo projeto de comportamento e antecipar comportamentos de alter, nomeadamente comportamentos que irão reagir ao seu próprio comportamento, ou comportamentos aos quais considera que será necessário ele, ego, reagir. Ou seja, a interação social pressupõe que os intervenientes tenham determinadas expectativas, isto é, imagens antecipadas do que vai acontecer. Luhmann propõe distribuir estas expectativas em duas categorias, em função do desenrolar posterior da interação. O que vai acontecer poderá, ou não, corresponder às expectativas dos intervenientes. Quem tinha uma determinada expectativa, verificando que os factos não lhe corresponderam, pode ter duas reações: pode mantê-la (se se reencontrar numa situação semelhante, voltará a esperar da parte dos outros o que esperou desta vez, embora tenha agora feito uma experiência decepcionante); ou pode abandoná-la (se se reencontrar numa situação semelhante, não voltará a abordá-la com a mesma antecipação). Expectativas que estaríamos dispostos a rever em função das nossas experiências são chamadas cognitivas; expectativas que queremos manter são chamadas normativas.
Este raciocínio parte, nomeadamente, de dois pressupostos que merecem ser explicitados. Um primeiro é que podem existir expectativas conscientemente diferenciadas, isto é: suficientemente detalhadas e estáveis nos seus elementos para que possa ter lugar uma comparação entre o esperado e o que se experienciou. Convirá admitir que nem sempre abordamos uma situação com tais antecipações claras. Deve, no entanto, reconhecer-se – este é o ponto de partida da sociologia funcionalista – que a vida social seria difícil, ou melhor dizer, que não se poderia falar em vida social, se não dispuséssemos pelo de algumas possibilidades de antecipar os comportamentos os outros. Assim, por exemplo, a comunicação verbal, componente essencial da vida social, assenta num vasto conjunto de expectativas que poderíamos qualificar de semânticas: para referir um exemplo trivial, se alguém diz “Olha, um gato!” teremos a expectativa clara de encontrar, olhando para onde olha quem falou, de ver um gato.
O segundo pressuposto é que, tratando-se de expectativas conscientemente diferenciadas, saberemos, a priori, qual será a nossa reação em caso de não correspondência entre estas e a realidade. Isto verifica-se em certos contextos institucionalizados. Assim, na atividade científica, formulam-se hipóteses que são, tipicamente, expectativas cognitivas (um enunciado explícito do que se espera, associado à predisposição em reformulá-lo se a experiência não o confirmar). Diferentemente, um regulamento administrativo fundamentará, nos que participam na sua aplicação, expectativas tipicamente normativas, das quais os envolvidos sabem que serão mantidas, mesmo que, em certas circunstâncias, tenham sido decepcionadas. O superior hierárquico que verifica um incumprimento por parte de um subordinado esperará que, da próxima vez, a tarefa seja cumprida. Poder-se-ia, considerando estes dois exemplos, admitir que a nitidez com a qual Luhmann opõe estas duas figuras tem a ver com a experiência concreta que fazia, precisamente nestes anos, da diferença entre a atividade administrativa a que se tinha dedicado no início da sua carreira e a atividade científica, na qual se envolveu a partir do início dos anos 60. É questionável que, em contextos menos estruturados (vida de família, encontros ocasionais, atividade de grupos de pessoas conhecidas, etc.), as expectativas tenham um estatuto tão claro. No entanto, deveremos também reconhecer que, na medida em que se formularão expectativas algo especificadas, também se lhes dará alguma relevância (para quê enunciar uma perspectiva de futuro para a esquecer logo que não for correspondida?). Esta relevância poderá variar consideravelmente, mas teremos provavelmente que admitir que esta variação se deixará caracterizar adequadamente num contínuo entre os dois tipos identificados por Luhmann. Empiricamente, encontraremos várias modalidades de expectativas, entre as normativas puras (não as abandonamos, quaisquer que sejam as decepções) e as cognitivas puras (reformuladas com naturalidade em caso de decepção): expectativas que estávamos à partida dispostos a abandonar, mas cuja reformulação nos “custa” (a nossa equipa preferida não ganhou o jogo; a criança, afinal, está com febre); expectativas de que não queríamos abdicar, mas que se revelam na realidade mais maleáveis de que nós próprios esperávamos (não esperávamos tal atitude da parte de um amigo, mas acabamos por continuar a tratá-lo como amigo apesar desta decepção). Ou seja, a distinção de Luhmann talvez não permita delimitar dois universos claramente delimitados de expectativas, mas permite, sim, avançar na análise das várias modalidades das nossas expectativas.
Recorrendo a estes conceitos, dir-se-á, numa primeira abordagem, que uma regra é válida quando corresponde, na perspectiva de quem a conhece, a uma expectativa normativa. Isto é: esta pessoa, mesmo que se passe outra coisa, vai continuar a pensar que, no futuro, acontecerá o que a norma enuncia. Aprofundando a análise das situações nas quais recorremos à noção de validade, no entanto, verificaremos que se acrescenta uma dimensão social a esta primeira definição. Dizer que uma regra é válida implica não só que uma pessoa deriva desta regra uma expectativa de que não pretende abdicar, mas também que esta pessoa espera que outras pessoas derivarão uma mesma expectativa e que estão também dispostas a mantê-la. Ou seja: a pessoa que fala em validade de uma regra espera normativamente que esta regra corresponda, para as outras pessoas, a uma expectativa normativa.
Afirmar que uma regra vale é afirmar que os outros devem considerá-la como uma regra obrigatória. Estes dois planos de expectativas normativas deixam-se distinguir quando se pode distinguir, para retomar uma linguagem de juristas, a forma do conteúdo (deixarei aqui aberta a questão de saber se outros mecanismos poderão permitir um desdobramento equivalente das expectativas).
Isto aplica-se tanto no direito como noutros campos sociais. No direito, porque existem múltiplos enunciados que revestem a mesma forma de lei, podemos separar a noção abstrata, segundo a qual a lei tem que ser cumprida, da noção mais concreta segunda a qual um determinado comportamento deve ser adotado. Mas verifica-se algo similar nos jogos: estes são organizados por “regras”. Quem participa num jogo tem, por um lado, a noção abstrata de “ter que cumprir as regras” e de que apenas poderão jogar com ele os que “reconhecem as regras”, e terá, por outro lado, determinadas expectativas normativas concretas, que poderão, ou não, pertencer ao conjunto das regras.
Em tais contextos (jogo, legislação), a forma de uma regra (a sua pertença “às regras do jogo”, “à lei”) significa, para o seu destinatário, não apenas que ele próprio poderá basear expectativas normativas nesta regra, mas também que outros (parceiros, adversários, espectadores) terão a mesma expectativa.
A separação entre forma e conteúdo, no entanto, representa na realidade apenas uma primeira condição para a validade. A segunda condição torna-se óbvia se imaginarmos a seguinte situação: existe um conjunto identificado de regras, mas, empiricamente, pode constatar-se que são poucos os que as cumprem, ou muitos os que manifestam que as suas expectativas são outras. Quem testemunha uma tal situação desistirá naturalmente de atribuir um sentido normativo à forma comum das regras que muitos outros ignoram. Formulando agora esta condição pela positiva, dir-se-á que as condições concretas da validade de um conjunto de regras consistem, por um lado, no revestimento por parte dessas regras de uma forma comum que facilite a sua identificação como regras a cumprir, mas também, por outro lado, que as regras que revestem esta forma, numa certa proporção, sejam manifestamente reconhecidas por uma certa proporção de pessoas, uma experiência necessária para que uma pessoa dê à forma destas regras o sentido de “regras que os outros também reconhecem”. Para designar esta situação de aparente adesão de muitos outros a uma regra, que fundamenta a adesão de uma pessoa a determinadas regras, Luhmann fala em legitimidade, dando à palavra um sentido algo distinto do que lhe dão outros autores, em particular Jürgen Habermas.
Podemos agora voltar à definição do direito positivo defendida por Luhmann. Pressupõe, em primeiro lugar, uma determinada “forma”. Referimo-nos a um conjunto de regras identificado como conjunto – a ordem jurídica – ao qual podem ser atribuídas determinadas características.
Uma característica essencial é que todos podem derivar das regras que pertencem a esta ordem expectativas normativas, podendo considerar – aqui é que está o ponto crucial – que os outros vão fazer o mesmo. Até aí, não fizemos mais que propor mais uma definição, um tanto mais abstrata do que outras, do que é uma ordem jurídica. É sobretudo uma definição mais prudente do que muitas outras. Com efeito, até aqui, o raciocínio apenas teve em conta as expectativas de pessoas observadas ou, como talvez convenha melhor dizer, imaginadas a título experimental. Admite-se que um grande número de pessoas estará disposto a esperar determinados eventos, com a convicção de que muitos outros esperam o mesmo. Não se falou em comportamentos. Podem admitir-se desvios, até em proporções significativas. E não se falou em convicções. Pode-se estar à espera de algum evento previsto pela lei, e saber que muitos outros também o esperam, sem ter razões substanciais de desejar este evento.
Nesta base, Luhmann procura caracterizar a ordem jurídica moderna. Distingue-se pelo facto de se poder alterar os seus conteúdos e as expectativas que neles se apoiam. Isto é, a pessoa que, num determinado momento, retira de uma regra jurídica uma expectativa normativa, sabendo que os outros poderão ter a mesma expectativa normativa, também sabe, desde já, que a regra poderá, no futuro, ser alterada e que isto levará todos, ela incluída, a alterar as suas expectativas normativas. Ou ainda, visto numa perspectiva objetiva, pode, em qualquer momento, alterar-se uma regra de tal maneira que, efetivamente, as expectativas normativas da população acompanhem esta alteração. Noutras palavras, o direito positivizado permite produzir novas expectativas normativas e alterar as que em certo momento vigoram.
(b) Na discussão geral das relações entre direito positivo e sociedade moderna, Luhmann propõe um argumento circular: o direito positivo torna a sociedade moderna possível; mas, inversamente, a sociedade moderna fornece as condições necessárias ao direito positivo. O primeiro termo desta argumentação é mais valorizado (veja-se o título do artigo já referido, de 1970, assim como, precisamente, as primeiras linhas do capítulo “Positivização do direito” na Sociologia do direito, 1972). Talvez, por um lado, porque quer mostrar aos seus novos colegas sociólogos a importância que há em incluir o direito no âmbito de observação da sociologia e, por outro lado, porque quer sugerir aos seus (antigos?) colegas juristas o que está em jogo na sua prática, para além de interpretar leis, produzir contratos e regulamentos, gerir litígios, etc. Luhmann retoma neste ponto a tese que domina toda a sua obra: a sociedade moderna caracteriza-se pela sua diferenciação funcional. Apenas se pode entendê-la se se reconhecer que nela vários âmbitos de atividade se diferenciaram, cada um com características próprias e desempenhando uma função específica necessária à reprodução da sociedade no seu conjunto. Em termos breves, poder-se-á dizer que as necessidades normativas de uma sociedade assim diferenciada se tornaram completamente imprevisíveis. Com efeito, por um lado, a diferenciação dos vários sistemas tornou possível, no seio de cada um deles, novas alternativas de ação (exemplos: a diferenciação do dinheiro torna possível atividades econômicas mais diversificadas do que nas economias tradicionais; a diferenciação do sistema político favorece a contraposição de projetos políticos em competição, etc.). Luhmann fala neste ponto de “sobreprodução de possibilidades”. Por outro lado, dado que cada sistema evolui segundo a sua lógica própria, podem surgir dificuldades na conciliação entre os seus desenvolvimentos respectivos (Luhmann cita nomeadamente o exemplo de constatações científicas que colidem com objetivos políticos ou econômicos). Num tal contexto, é indispensável poder criar novas normas, para novas atividades, e face a novas possibilidades de incompatibilidade entre diversas atividades. Daí a necessidade do direito positivizado, isto é, sempre mutável.
Diretamente na linha deste argumento, sustenta que o passo determinante no sentido de um direito plenamente positivizado, isto é, valendo porque mutável, se deu com a produção, ao longo do século XIX, de legislação em novos domínios, tais como o trabalho ou o alojamento. A codificação do direito privado, no início desse mesmo século, teria sido, antes de mais, uma experiência de sistematização de normas já reconhecidas. A este propósito, Luhmann qualifica de ainda imperfeito o conceito de direito positivo de Hegel, que não deixa no entanto de qualificar de passo importante no processo de positivização.
Inversamente, a diferenciação funcional torna possível a positivização, em particular por um processo: a diferenciação do sistema político. Com efeito, o sistema político moderno, com a sua capacidade de produzir decisões vinculativas, poderá assumir, entre as suas funções, a de produzir o direito positivo de que a sociedade, na sua globalidade, carece.
Convém registar um ponto conceptual importante. Nos trabalhos aqui discutidos, o direito necessário para a sociedade moderna é expressamente qualificado de estrutura social, e não de sistema (veja-se o título da parte III da Rechtssoziologie, 1972: “O direito como estrutura da sociedade”). E estabelece-se um vínculo privilegiado entre este direito-estrutura e um sistema social em particular, o sistema político. Esta arquitetura teórica será revista em profundidade nos anos seguintes, com a qualificação do direito como sistema social, entre um amplo leque de outros sistemas sociais, tendo com todos estas relações de uma comparável complexidade.
A circularidade do argumento que se acaba de sintetizar pode causar alguma perplexidade: como pode surgir esta sociedade moderna, que necessita de um direito positivizado, que, por sua vez, apenas se pode desenvolver numa sociedade… moderna. Esta circularidade desfaz-se com a tomada em conta de vários processos históricos que teriam, na perspectiva de Luhmann, favorecido a positivização do direito. Na transição para a modernidade, a sociedade teria, desta forma, encontrado um direito quase positivizado, estando assim reunidas condições favoráveis para uma coevolução de um tipo de direito e de um tipo de sociedade que se correspondem um ao outro. Este componente no raciocínio de Luhmann conduz aos fenómenos que, para além da diferenciação funcional (que poderá, no entanto, ser relacionada com alguns deles), favorecem a positivização do direito. Entre estes, pode distinguir-se entre processos históricos e mecanismos que continuam a atuar hoje em dia. Esta distinção justifica-se na medida em que os processos históricos são causas possíveis, enquanto os mecanismos contemporâneos podem ser abordados como devendo a sua manutenção às funções que desempenham na manutenção da positividade do direito (perspectiva “funcional-estruturalista”: a noção da função orienta a interpretação das estruturas observadas).
Os processos históricos relevantes, discutidos brevemente na Rechtssoziologie, são principalmente:
- A “jurisdição com propósito de manutenção da ordem”: as compilações de leis sob a iniciativa de monarcas que queriam unificar a prática dos tribunais no seu reinado e preservar os tribunais de influências locais (p. 193).
- A recepção do direito romano que possibilitou a discussão de conteúdos normativos sem referência direta a um contexto social e que favoreceu o surgimento de uma noção de validade distinta da vigência óbvia dos costumes (p. 196).
- Os esforços, desde a Idade Média até ao Iluminismo, em determinar uma hierarquia entre “direito divino, natural e positivo” (p. 197), que conduziu progressivamente à noção abstrata de validade.
- A oposição, na Idade Média, entre direito antigo e direito novo. Inicialmente formulada para justificar a aplicação do direito antigo, teria criado as categorias necessárias para pensar a ordem inversa, privilegiando o direito novo (p. 198).
- Os rituais que se desenvolveram na Idade Média para dar solenidade a novos compromissos (p. 199).
- Finalmente – e aqui reencontramos claramente o processo de diferenciação funcional, em particular do sistema político – o surgimento de processos de decisão política complexa, nos quais já não se trata apenas de cumprir a vontade do soberano mas de formular objetivos políticos. Seria no contexto de tais processos que se teria progressivamente aprendido a distinguir entre, por um lado, infrações, a considerar como gestos de resistência ao soberano, aos quais se reage por uma revalorização das normas postas em causa, e, por outro lado, a oposição contra a legislação, susceptível de ser interpretada como candidata ao fundamento de uma legislação alternativa (p. 200 s).
Estes vários processos históricos concorreram, em particular, em delimitar um universo identificável de leis (compilações, recepção das codificações romanas), em problematizar, ou seja, fazer surgir, a noção da sua validade (debate sobre as fontes divinas e humanas do direito), e em relativizar a noção de imutabilidade do direito.
(c) Luhmann dedica exposições mais extensas aos mecanismos que contribuem atualmente para a manutenção da positividade do direito. Distingue aqui dois aspectos. Por um lado, manter a positividade significa garantir que se mantenha, na população, apesar das alterações dos conteúdos jurídicos, uma experiência de validade da norma jurídica (I). Por outro lado – aspecto que será tratado aqui mais sumariamente ––, a positividade exige que o direito, pelas suas características intrínsecas, possa ser facilmente alterado (II). Distinguir estes dois aspectos não significa que se deva presumir que mecanismos específicos serão dedicados a cada um. Luhmann não procura estabelecer aqui relações bi-unívocas entre funções e mecanismos. Uma vez identificada, a função inspira várias possíveis interpretações das estruturas.
(I) Quanto à manutenção das experiências de validade, a tese mais conhecida é exposta em Legitimação pelo procedimento. Nesta obra, como já foi acima assinalado, Luhmann utiliza um conceito particular de legitimidade. Não se interessa pelos motivos substanciais que se pode ter em aderir a determinadas regras ou decisões, mas sim pelas aparências de adesão que proporcionam determinados comportamentos, aparências que contribuem para a orientação dos comportamentos dos outros. A aceitação de uma norma não se prenderia com argumentos de fundo. Resultaria da composição de várias experiências, todas elas favorecidas pelo procedimento: de conformidade e aparente adesão de outras pessoas; do isolamento a que uma pessoa ficaria votada se adotasse uma atitude de contestação; do facto de a decisão ter sido tomada por outros e não dizer diretamente respeito à pessoa que assiste de longe ao procedimento, etc. Esta aceitação sem motivo de fundo que Luhmann chama legitimidade é um dos possíveis sustentos sociológicos da positividade do direito: a experiência de uma norma jurídica poder ser produzida por decisão e sempre poder ser alterada surge na participação em sucessivos procedimentos jurídicos, no assistir de longe a numerosos processos jurídicos e no conhecimento que se tem do facto de um sem número de procedimentos jurídicos (decisões em tribunais e parlamentos) terem lugar com a aparente aceitação dos que participam e dos que assistem.
Este mecanismo é favorecido pela distinção entre procedimentos legislativos e procedimentos judiciais. Por um lado, reservar as decisões individuais para procedimentos posteriores facilita a aceitação dos resultados de um procedimento em que são discutidas as regras abstratas. Inversamente, a discussão dos casos particulares é facilitada pelo facto de várias questões poderem ser consideradas como resolvidas e insusceptíveis de nova discussão, por já terem sido tratadas noutra sede.
Desta maneira, a positividade do direito derivaria da experiência que temos dos “procedimentos”. Resta, no entanto, captar melhor esta realidade dos procedimentos. Aqui, voltamos a encontrar um argumento à primeira vista circular: procedimentos são encadeamentos de situações, que percepcionamos como ligadas umas com as outras devido a determinadas estruturas. A primeira estrutura referida é... o próprio direito positivo: «normas jurídicas gerais, valendo para muitos procedimentos jurídicos». E, no entanto, não estamos num simples círculo fechado (o procedimento produz direito positivo que, por sua vez, produz o procedimento). Para já, porque, como se diz na própria citação, contemplam-se aqui regras aplicáveis também noutros procedimentos. Logo, a percepção da sua positividade não depende apenas do que se está a passar num procedimento em particular. A experiência da maneira como identificaram e estruturaram eficazmente outros processos contribui para os reconhecer como estrutura do procedimento em que estamos atualmente envolvidos. Para além, disto, Luhmann acrescenta a este fator vários outros, sem relação direta com o direito: os rituais de abertura de momentos processuais, os dispositivos materiais da sua identificação e delimitação (refere o exemplo sugestivo de um restaurante transformado em local de voto, transformação imediatamente perceptível “até pelo pessoal de limpeza”: mesas deslocadas, cabinas, cartazes, etc.), ou, ainda, o facto de cada processo dar lugar à uma “história” própria.
Um segundo mecanismo de garantia da positividade é a estreita relação entre o direito positivo e a possibilidade do uso da força para a sua execução. O argumento inicial, neste ponto, é simples: «Só pelo meio de um poder que tenha como base [os meios da coacção física] pode o direito atingir esta margem de variabilidade e esta independência interna em relação a instituições concretas preexistentes que possibilitam a positivização». Luhmann pretende, no entanto, distanciar-se do modelo convencional segundo o qual a coacção aumentaria a probabilidade das regras jurídicas serem cumpridas. Pretende mostrar que duas evoluções estão relacionadas: as possibilidades cada vez mais sofisticadas de usar a força simultaneamente são facilitadas pela positivização do direito e contribuem para esta.
É na primeira parte deste modelo que incide principalmente a sua reflexão (é lícito admitir que a segunda é mais óbvia). Podem encontrar-se em particular dois raciocínios. Por um lado, a capacidade de constrangimento de uma autoridade torna-se mais fácil de se percepcionar e, logo, é mais intimidante, em virtude do mecanismo da decisão, nomeadamente a decisão jurídica. Este raciocínio parte de um pressuposto sociológico em que Luhmann insiste em vários trabalhos dessa época: para compreender processos sociais, temos que ter em conta o facto de os motivos de ação de uma pessoa não serem acessíveis aos outros. Logo, em situações concretas, cada um tem que atuar na base de presunções sobre estes motivos, que terá que construir a partir dos indícios que a situação lhe fornece. Uma decisão, quando formulada em termos condicionais (tal comportamento, ou, inversamente, o não cumprimento de tal ordem, terá como consequência a aplicação de tal medida de coacção) facilita esta reconstrução hipotética, por parte de uma pessoa, dos motivos de outras pessoas. Se vir alguém abster-se de um comportamento proibido, ou executar um comportamento ordenado por uma tal decisão, poderá presumir que esta atitude se deve à decisão. Se, para além disto, como indivíduo moderno, tem a noção de que se obedece a uma decisão porque existe uma razão de obedecer, poderá presumir que esta atitude de obediência se deve, ou ao reconhecimento de “boas razões” da decisão, ou porque se receou o uso da força. Esta última presunção, segundo a qual as atitudes dos outros de conformidade às decisões da autoridade se deve ao receio que os outros tem da força, dá, por assim dizer, força à noção de força da autoridade.
Por outro lado, a questão da efetividade da força susceptível de ser mobilizada para a execução do direito coloca-se em termos novos no contexto das nossas ordens jurídicas modernas complexas, que se aplicam a sociedades complexas. Com efeito, no contexto de uma sociedade complexa, ninguém pode ter uma visão de conjunto sobre os casos de aplicação do direito e sobre as reações das autoridades.
Neste ponto, Luhmann inverte radicalmente a abordagem do fenómeno bem conhecido da criminologia e da sociologia do direito, a saber a “cifra negra” (a aproximar do conceito de “pirâmide da litigiosidade”). Numa interpretação funcionalista, considera que a opacidade causada por estruturas sociais complexas – não é possível conhecer todos os ramos do direito e acompanhar as medidas da sua implementação – favorece a experiência de validade do direito, na medida em que apenas resta ao cidadão comum presumir que, nos domínios dos quais não temos experiência direta, a autoridade intervém efetivamente cada vez que isto é necessário.
Para o leitor de hoje, este raciocínio não pode deixar de levantar alguma dúvida. A complexidade da sociedade poderá também contribuir para o sentimento de insegurança. O próprio Luhmann tem a intuição deste fenómeno: «A necessidade de segurança jurídica – bem como o próprio tema – apenas surge como consequência da positivização do direito, isto é, como consequência do facto de o indivíduo se poder sentir ameaçado, já não apenas por comportamentos não autorizados, mas também por alterações do direito, ou seja, por comportamentos autorizados».
Outro fator de positivização tratado com algum pormenor por Luhmann é a reformulação do direito em termos de programa condicional, fator ao qual dá um relevo equivalente ao que dá à coacção física. Quanto a este fenómeno, deve notar-se que o seu estatuto nos textos aqui analisados não é fácil de determinar. Luhmann relaciona-o explicitamente com dois aspectos da positividade: “capacidade de aprendizagem” e “variabilidade estrutural”. O primeiro aspecto prende-se diretamente com a questão da validade, cujos fatores sociológicos procuramos aqui inventariar (a positivização do direito significa que os destinatários estão dispostos a aceitar alterações dos conteúdos jurídicos, ou seja, aprender novos conteúdos). O segundo diz respeito a outra característica: a facilidade com a qual o direito, pelas suas próprias características técnicas, se deixa alterar. Face aos argumentos que Luhmann constrói à volta da programação condicional, poderá sustentar-se que, em definitivo, relaciona-a mais estreitamente com a variabilidade do que com a validade. E, no entanto, são também sugeridas ideias que têm a ver com o tema da validade.
Quanto a este, pode retirar-se das exposições de Luhmann dois raciocínios. Um baseia-se na ideia segundo a qual a figura da norma condicional constituiria um mecanismo que tornaria “sustentáveis” as incertezas quanto aos comportamentos dos outros e à efetiva aplicação de uma sanção em caso de comportamentos desviantes. Face ao futuro próximo, deixamos de ter que estar abertos a qualquer hipótese. Esta incerteza indiferenciada transforma-se em duas alternativas que nos vão permitir qualificar os acontecimentos: corresponderá o comportamento à norma ou não? Na negativa, haverá uma sanção ou não? Será que este “aliviar” da incerteza pode favorecer uma aprendizagem da validade das normas? Luhmann, neste preciso ponto, não é explícito. Poderia sustentar-se que esta estruturação da experiência pode favorecer a construção de uma experiência de validade, isto é, de cumprimento generalizado de uma determinada norma, da seguinte maneira. Admite-se que, face a um desenrolar concreto dos acontecimentos que sempre terá aspectos opacos ou indefinidos, uma pessoa preferirá, segundo o pressuposto luhmanniano de tendência para a conformidade, testemunhar um cumprimento da regra e não um desvio. Ou seja, admite-se – numa linguagem sociológica mais usual – uma tendência em produzir uma realidade de conformidade. Graças à programação condicional, uma tal construção de uma realidade de conformidade já não tem que se fazer de raiz, eventualmente perturbada, ou até impedida, por alguma sensação de decepção ou de indignação. Poderá elaborar-se através do “jogo” que consiste, face a um acontecimento que poderia configurar um acto contrário à norma, ou a uma aparente ausência de reação por parte da autoridade, em procurar, alternativamente, reconsiderar a qualificação inicial do acto observado (pensando bem, não era tão grave) ou a apreciação que se fez da reação (O que me pareceu uma não reação ou uma reação demasiado mansa talvez tenha escondido uma reação muito mais incisiva). Posso até, eventualmente, deixar em aberto esta alternativa. Nos três casos, uma percepção que se poderia ter transformado numa experiência de transgressão, tornou-se numa experiência – fraca talvez, mas suficiente – de validade.
A programação condicional poderá favorecer a experiência de validade através de outro mecanismo, ao qual Luhmann dedica mais atenção. Este tipo de programação tem consequências no plano da avaliação das decisões tomadas e dos seus efeitos. Em princípio, face a uma decisão tomada em aplicação de uma norma condicional, examinar-se-á em primeira linha se as condições enunciadas eram realmente cumpridas; sendo o caso, examinar-se-á se a decisão foi efetivamente cumprida. Nada, na própria norma condicional, nos compromete em ir além destes dois passos e, em particular, em apreciar as consequências mais longínquas das normas.
Diferente seria a avaliação de uma medida tomada em aplicação de um programa “finalizado”, definido por alguma finalidade. Uma avaliação orientada por finalidades é mais complexa e mais susceptível de revelar desvios ou insuficiências, que poderão “roer” a legitimidade da instância que tomou a decisão. Uma avaliação baseada numa norma condicional tem mais hipótese de ter um resultado positivo. Em relação a esta diferença, Luhmann chama a atenção para as virtualidades, nas sociedades modernas, da separação entre esfera política e esfera judicial, funcionando a primeira por programação finalizada, a segunda por programação condicional. Evita que o Estado seja submetido em todas as suas atividades às mesmas exigências de apreciação. Separa um âmbito de ações mais limitadas e previsíveis, às quais será mais fácil de dar aparências de efetividade (a atividade dos tribunais e de certos setores da administração), e um âmbito de atividades mais variadas e flexíveis, mas exigindo um maior esforço na demonstração da sua eficácia (o âmbito político).
Temos aqui mais um ponto em relação ao qual Luhmann propõe uma imagem que se afasta de experiências mais recentes. Também neste ponto, no entanto, alude aos desenvolvimentos que entretanto se verificaram, assinalando em particular a dificuldade que poderá haver, a longo prazo, em não contemplar os efeitos diferidos das leis. Evoca até a possibilidade de se desenvolverem procedimentos específicos de decisão finalizadas sobre a aplicação de normas condicionais. Antecipava assim a proliferação de procedimentos avaliativos à qual se assiste hoje em dia. Estávamos ainda no início dos anos 70, ainda alguns anos antes do surgimento do tema dos efeitos perversos das leis e, pouco mais tarde, com fortíssimas afinidades com este, do tema da crise do Estado-providência.
Finalmente, para terminar este ponto, sem, no entanto, pretender ter tratado exaustivamente os possíveis fatores de produção de experiências de validade abordados por Luhmann, lembremos este fator referido nas próprias definições iniciais do fenómeno: aceita-se o direito positivo no seu estado atual, em parte, porque se sabe que é susceptível de ser alterado. (II)
Quanto ao tema da variabilidade, lembremos que Luhmann insiste nas virtualidades da programação condicional: facilitaria consideravelmente o trabalho de elaboração legislativa, ao impor à partida a distinção entre condições e dispositivo, sugerindo assim a formulação tanto de alterações das condições como de alterações do dispositivo.
O principal mecanismo é a distinção entre a legislação e a atividade dos tribunais. Esta distinção lida, poder-se-ia dizer, com esta característica paradoxal do direito positivo, estabilizado, porque susceptível de ser alterado.
Os tribunais devem aplicar o direito como válido atualmente, sem contemplar a sua evolução no tempo, ou destes fenómenos (embora apoiando-se em numerosas referências a trabalhos empíricos nos campos da sociologia, ciência da administração, psicologia social, etc.). Seria no entanto perfeitamente possível, a partir deste modelo bastante pormenorizado, construir um questionário, referindo-se de preferência a determinados textos legais, e convidar as pessoas questionadas a indicar os motivos da sua adesão, da adesão de outras pessoas, propondo um leque de argumentos, tais como: “porque está de acordo”, “porque quer evitar uma multa”, “porque pensa que não vai vigorar muito tempo”, etc. Diferenças nas respostas, entre categorias sociais, entre países, poderiam oferecer um valioso material para aprofundar, com bases empíricas, a questão do lugar do direito positivo nas nossas sociedades, ou seja, proporcionam a experiência de um direito estável.
Nesta perspectiva, não podem ter em conta eventuais situações de inefetividade; não se preocuparão com eventuais efeitos imprevistos das suas sentenças, etc. Por sua vez, as instâncias legislativas abordam o direito como susceptível de ser alterado. Nesta perspectiva, poderão tomar em consideração todo o universo de reação à lei que os tribunais tiveram que ignorar. Um terceiro fenómeno que Luhmann relaciona em particular com a variabilidade do direito é a sua “reflexividade”. O direito regulamenta-se a si próprio. Esta regulamentação prevê, em particular, as modalidades de alteração da lei, isto é, a variabilidade do direito. A diferença entre normas substanciais e normas de procedimento é mais uma forma de lidar com a característica paradoxal do direito, estabilizado porque variável. Sempre que se empreende a alteração de determinadas normas, isto é feito na base de outras normas, processuais, as quais, durante o processo de revisão do direito substancial, não serão alteradas. Pela maneira como o direito define os processos da sua alteração, há sempre, por definição, um conjunto de normas que se mantém estável, garantindo melhores condições de variabilidade às restantes.
Para concluir a apresentação desta etapa do pensamento de Luhmann sobre o direito, deve insistir-se na atitude de Luhmann face aos fenómenos observados. Não é uma atitude de pura produção de conhecimento. Luhmann também exprime, muito claramente, uma valoração, e uma valoração muito positiva do fenómeno da positivização. Um fragmento particularmente claro neste sentido, retirado de um dos primeiros textos onde desenvolve o tema, é o seguinte: «A complexidade do que pode, desta maneira, ser formulado em normas e os resultados que se podem obter, com uma razoável previsibilidade (ziemlich zuverlässig), é espantosa e admirável, mesmo que o aparato esteja a gemer, debaixo da complexidade secundária das suas normas, e a reivindicar alívio. A convicção de Luhmann é que a sociedade do seu tempo necessita do direito positivo e que, logo, o direito atual tem que se tornar plenamente positivo. Neste sentido, parece-lhe que, em particular, a teoria do direito (nomeadamente pela sua maneira de insistir na noção de hierarquia das leis) não está à altura de um direito plenamente positivizado. A sua ambição é de contribuir para a necessária renovação desta teoria, através de uma nova teoria sociológica do direito: «Um estilo tão instável e oportunista do direito requer um elevado grau de abstração do controlo do pensamento e de transparência das estruturas e relacionamentos – exigência que, atualmente, não são cumpridas, de longe, nem pela ciência do direito nem pela sociologia.
Devem ser identificados quais os problemas que devem ser solucionados nos sistemas sociais de uma sociedade moderna, quais as soluções funcionalmente equivalentes que são alcançáveis e como as soluções podem interferir umas com as outras ou até se bloquear umas às outras. Para isto, a dogmática jurídica deveria ser ligada a uma sociologia dos sistemas suficientemente elaborada. É nesta perspectiva que a Sociologia do Direito, na sua edição de 1972, se conclui com o capítulo intitulado: “Perguntas à teoria do direito”. Capítulo que desaparece na reedição de 1983. Para entender o alcance desta alteração temos que abordar a etapa seguinte na evolução do pensamento de Luhmann sobre o direito.
B - A autopoiesis do direito
A teoria de Niklas Luhmann nunca deixou de evoluir. O próprio autor costuma insistir na continuidade deste processo. Tratava-se, desde o início, de desenvolver uma teoria que desse adequadamente conta da sociedade moderna, e este objetivo manteve-se ao longo do tempo.
O seu método de trabalho – as famosas “caixas de fichas” – favorece esta continuidade: os novos conceitos elaboram-se em boa parte numa reflexão sobre a sua possível inserção no universo complexo de conceitos preexistentes. Luhmann reconhece, no entanto, uma reorientação mais radical, para não falar de uma ruptura, entre o fim dos anos 70 e os primeiros anos de 80, qualificando este momento de “mudança de paradigma”. Passa a reorganizar toda a sua conceptualização dos sistemas sociais à volta do conceito de “autopoiesis”.
Nos estudos sobre o direito que se seguem à Rechtssoziologie, Luhmann dá uma importância crescente ao tema da unidade do direito. Tem a convicção de que esta unidade é necessária ao desempenho das funções do direito. Mas ao mesmo tempo, vê-a como desafiada pelo crescimento e pela compartimentação da matéria jurídica. Procurando dar conta do que, apesar destes fenómenos, garante uma certa unidade real ao direito, é conduzido a dar uma importância crescente à noção de sistema jurídico (recorde-se que, até aí, o direito era abordado como uma estrutura social). No esforço de desenvolver um conceito de sistema jurídico que se distinga do que utilizam os teóricos do direito, vai, nomeadamente passando por uma discussão crítica da noção de justiça (em alemão: Gerechtigkeit), identificar como um dos mecanismos garantindo esta unidade, a distinção entre Recht e Unrecht, uma terminologia em alemão algo ambivalente, que, no contexto dos artigos dessa época, ainda pode ser lido como remetendo para a oposição justo/injusto.
Em artigos de meados dos anos 70, afirma-se também a ideia segundo a qual o “sistema jurídico” é constituído pelo conjunto das comunicações sobre o direito, abordado quer positivamente, quer negativamente (em comunicações que têm como tema a maneira de contornar ou de infringir o direito).
A estas reflexões sobre o direito correspondem, nestes mesmos anos, trabalhos mais gerais sobre os sistemas sociais, nos quais Luhmann dá conta de uma preocupação em completar um instrumentário conceptual que lhe parece ainda insuficiente. Na busca de formulações mais adequadas do seu modelo de sistema social vai encontrar o conceito de “autopoiesis” proposto por Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela, conceito que cita pela primeira vez, salvo erro, em 1980. Precisamente na fase em que empreende a reformulação da sua teoria, 1981,—Luhmann publica a recolha de artigos Ausdifferenzierung des Rechts. Este volume reúne trabalhos originalmente publicados entre 1965 e 1980, isto é, todos anteriores à recepção do conceito de autopoiesis, mas alguns anteriores, outros posteriores à reconceptualização do direito como sistema social. O título poderia assim merecer duas leituras: textos sobre a diferenciação do direito nas sociedades modernas; textos dando conta da diferenciação do conceito de sistema jurídico no pensamento de Luhmann. Poder-se-ia também sustentar que Luhmann quis reunir neste livro um conjunto de textos que, apesar desta evolução, tinham ainda uma certa unidade, antecipando uma ruptura mais profunda e sinalizando assim o fim de uma etapa. Luhmann considera o modelo elaborado a partir do conceito de autopoiesis como suficientemente consistente para poder iniciar a redacção da parte principal da sua obra, uma sociologia da sociedade moderna, abordada a partir dos seus sistemas funcionalmente diferenciados. Trabalho que, como se sabe, iniciou com Soziale Systeme, discussão geral do conceito de sistema social, seguido de um conjunto de obras dedicadas a vários sistemas funcionalmente diferenciados: a economia (1988), a ciência (1990), o direito (1993), a arte (1995), e concluída por um trabalho sobre a própria sociedade, tal como se experiencia a si própria principalmente através dos sistemas funcionalmente diferenciados que a compõem.
O principal texto sobre o direito publicado depois da “mudança de paradigma” é o volume que se insere na série de trabalhos que se acaba de referir. Publica também, no entanto, numerosos artigos sobre este mesmo tema antes e depois deste livro.
Tem crescido consideravelmente, nestes últimos anos, a bibliografia sobre a teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann, nomeadamente a sua aplicação ao direito, pelo que me cingirei aqui a uma exposição sucinta, em cinco pontos:
- Luhmann define a sociedade como composta por comunicações. Isto é, quer distinguir claramente os factos sociais, comunicacionais, dos factos de consciência, do foro individual e psicológico. O raciocínio subjacente a esta opção é que os factos de consciência nunca podem ser apropriadamente conhecidos pelos outros indivíduos e que, logo, não podem fundamentar uma atividade social. Esta, pelo contrário, necessita de mecanismos que sejam tão independentes quanto possível das consciências das pessoas envolvidas.
- Para caracterizar esta realidade da sociedade-comunicação, Luhmann utiliza o conceito de autopoiesis. Qualquer acto de comunicação produz-se pelo facto de responder a outro acto de comunicação, e possibilita, por sua vez, comunicações futuras. A sociedade não é mais que o conjunto das comunicações atuais, que, pelo seu acontecer, a reproduzem, isto é, atualizam o facto de a comunicação poder permanentemente produzir comunicação. Com este conceito, Luhmann pretende escapar à concepções que se poderiam qualificar de substancialistas das realidades sociais. Não existe uma sociedade como uma vasta entidade que, por assim dizer, pairaria sobre indivíduos que incluiria. Apenas existe o que acontece agora. Mas o que acontece agora tem uma virtualidade de conexão com o imediatamente anterior e o imediatamente posterior que faz existir, aqui e agora, algo mais que os actos momentâneos.
- Na sociedade, isto é, no universo das comunicações, fazem-se e desfazem-se em permanência agrupamentos de comunicação dotados de uma unidade; uns mais efémeros, outros mais estáveis. Entre estes, Luhmann distingue três categorias. Os que considera como característicos das sociedades modernas, e aos quais dedica, logo, mais atenção, são os sistemas sociais funcionalmente diferenciados. Ao longo do seu percurso, Luhmann identificou, entre estes, a política, a economia, a ciência, a religião, o direito, a arte, o sistema educativo, o sistema de tratamento de doenças. Trata-se de universos de comunicação que têm em particular duas características: evoluíram no sentido de cumprirem uma função muito específica; e estendem-se a toda a sociedade-mundo. Uma segunda categoria de sistemas sociais são as organizações. O seu estatuto na obra Luhmann é notável. Iniciou a sua carreira universitária com um doutoramento sobre o fenómeno organizacional, que inspirou profundamente os seus primeiros trabalhos de sociologia dos sistemas sociais. Durante anos, as organizações passam claramente para o segundo plano, embora Luhmann as refira ocasionalmente como elementos de grande importância num modelo completo da realidade social. Nos seus últimos anos de vida, volta a abordar este tema, finalizando um livro que será publicado já depois da sua morte: Organisation und Entscheidung (2002). As organizações, ao contrário dos sistemas funcionalmente diferenciados, definem-se pelas suas limitações espaciais, materiais e pessoais, e estas limitações são mais relevantes na sua definição do que eventuais funções específicas, que podem evoluir ou diversificar-se. Nas sociedades modernas, sistemas funcionais e organizações completam-se. A diferenciação da economia e do sistema educativo possibilitou o surgimento de organizações com meios humanos e materiais consideráveis. Estas, por sua vez, sustentam materialmente o funcionamento dos sistemas funcionais. No caso do direito, trata-se dos tribunais, dos parlamentos, das profissões jurídicas, etc. Uma terceira categoria de sistemas sociais que Luhmann evoca frequentemente, mas aos quais dedicou apenas poucos textos, são as interações. São sistemas sociais efémeros, que se podem tecer tanto no quotidiano do funcionamento das organizações e dos sistemas funcionais, como fora deste. Além destas três categorias Luhmann procura, através dos conceitos de autopoiesis e de diferenciação social, reconceptualizar a própria sociedade, isto é, o universo da totalidade das comunicações, que tem, assim entendida, um âmbito necessariamente planetário.
- Face à diversidade dos sistemas sociais, a principal interrogação da teoria dos sistemas autopoiéticos incide nos mecanismos pelos quais se mantém a unidade de cada um destes sistemas. Ou, por outras palavras, como se mantém a autopoiesis de cada sistema, considerando, como ficou exposto no segundo ponto, que cada sistema existe pela maneira como, no imediato, comunicações acontecem como resultando de anteriores e gerando posteriores, relacionando-se umas com as outras, sendo esta relação simultaneamente possibilitada por e constitutiva de uma determinada característica. Mencionar-se-á aqui apenas dois mecanismos possibilitadores de autopoiesis, que se podem considerar como os mais importantes.
Um é, na terminologia de Luhmann, o «código binário». Observa este mecanismo, em particular, nos sistemas funcionalmente diferenciados e na sociedade em geral. Um sistema funcionalmente diferenciado é constituído pelo conjunto das comunicações que fazem intervir uma determinada distinção, distinção que (1) dinamiza a autopoiesis, na medida em que a invocação de um termo convida a responder pelo outro termo, (2) identifica o sistema, pois a distinção é diferente para cada sistema diferenciado, (3) existe, é reproduzida, é estabilizada no tempo, pelo facto de intervir nas comunicações que geram um determinado sistema. Entre estes códigos binários, recordar-se-ão em particular as oposições seguintes: ter/não ter (economia), verdadeiro/falso (ciência), conseguido/não conseguido (arte), e recht/unrecht, de acordo com o direito/contrário ao direito (direito). Um outro mecanismo é a auto-observação, através da qual, nas operações de um sistema, se pode fazer a diferença entre o que pertence ao próprio sistema (operações da mesma natureza) e o que lhe é exterior. É a este ponto que Luhmann dedicou os seus últimos e mais ambiciosos esforços teóricos.
Trata-se, resumidamente, de dar conta desta contradição: os sistemas sociais existem e subsistem, o que significa que conseguiram estabelecer mecanismos efetivos de auto-observação; mas, por outro lado, a auto-observação é impossível, porque um observador nunca se pode observar a si próprio. Existe aqui um paradoxo; logo, entender a realidade social significa entender como se conseguem reduzir paradoxos.
- Os sistemas sociais, assim entendidos, são universos de comunicações formados pelo facto de certas comunicações identificarem outras como pertencendo ao mesmo universo por mobilizarem a mesma distinção, isto é, propondo uma mensagem que faz sentido. O que não se baseia nesta distinção não faz sentido. Na terminologia sistemista, será qualificado de ruído, ou de irritação. Mais uma vez, a teoria conduz aqui a uma modelização que é contradita pela realidade e que obriga a um raciocínio complementar. Com efeito, podemos verificar que existe algum grau de articulação entre, por exemplo, os sistemas jurídico, político e econômico. Face a estes fenómenos, a teoria dos sistemas constrói o conceito de “acoplamento estrutural” (strukturelle Kopplung; structural coupling). Admite-se que, embora os acontecimentos de um determinado sistema não sejam diretamente relevantes para um outro sistema, este vai desenvolver, no processo de evolução da sociedade, mecanismos facilitando uma atenção focalizada para determinados aspectos do outro sistema e, por assim dizer, uma tradução entre os dois sistemas. Luhmann interpreta neste sentido a importância de diversos conceitos jurídicos, que considera dever-se ao facto de serem também relevantes noutros sistemas, facilitando assim a articulação estrutural do direito com estes sistemas. Analisa neste sentido, em particular, os conceitos de constituição (articulação com o sistema político) e de interesse (articulação com o sistema econômico).
III
Tendo sumariamente apresentado as duas conceptualizações desenvolvidas sucessivamente por Luhmann, trata-se agora de apreciar pontos comuns e diferenças (A), e de nos interrogarmos sobre o significado que pode ter para a recepção teórica do trabalho deste autor a transição conceptual observada (B).
A - Elementos de comparação.
Examinaremos aqui sucessivamente os pontos comuns entre as duas conceptualizações (a) e algumas diferenças particularmente significativas (b).
(a) A constante mais patente é o lugar central do tema da diferenciação funcional na argumentação de Luhmann. Para além disto, encontram-se em vários lugares nos trabalhos anteriores à “mudança de paradigma” motivos que se aproximam de conceitos que serão elaborados depois desta transição, mas que ainda não são aprofundados. Assim, a “reflexividade” dos sistemas, discutida nos anos 60-70, evoca a noção de auto-observação desenvolvida mais tarde. Várias formulações sobre a realidade do direito na Rechtssoziologie poderiam ser descrições concretas dos processos autopoiéticos. Um exemplo: «O critério (da positividade) reside na experiência jurídica atual tal como se processa em permanência». A noção de opacidade, na perspectiva de uma pessoa, dos motivos das outras pessoas anuncia a distinção entre sistemas psíquicos e sistemas sociais.
Inversamente, vários conceitos centrais da primeira etapa são retomados na segunda etapa; em primeira linha os de expectativas normativas e de positividade. Apesar destas afinidades entre as teorizações das duas fases, no entanto, existe em regra geral um certo desfasamento. É este desfasamento que se trata agora de medir mais precisamente.
(b) Uma primeira diferença reside na delimitação do objeto “direito”. Quanto à primeira fase, a definição seguinte, retirada da Rechtssoziologie, é particularmente clara: «Vamos designar expectativas de comportamento congruentes e generalizadas como o direito de um sistema social. O direito fornece congruência seletiva e forma desta maneira uma estrutura de sistemas sociais». O direito, desta maneira, é constituído por um conjunto de expectativas normativas de comportamento. Já no início do que designamos aqui a segunda fase, o direito é definido nos termos seguintes: «O sistema jurídico de uma sociedade é constituído pela totalidade das comunicações sociais que são formuladas com referência para o direito». Antes, expectativas que devem ser produzidas, que podem ser tidas em conta em determinados comportamentos. Depois, determinados comportamentos: comunicações sobre o direito. Esta diferença no que poderíamos chamar a matéria-prima para a qual remete o conceito de direito prende-se diretamente com a qualificação mais abstrata que merece o direito nas duas fases. Recordemos que, na primeira fase, o direito é uma estrutura (as expectativas nas quais se pode apoiar o funcionamento de um determinado sistema social). Na segunda fase, é um sistema social próprio, constituído, como todos os sistemas sociais, por comunicações.
A segunda definição capta uma realidade de alguma forma mais ampla, ou, dito por outras palavras, remete para algo de mais completo, mais diretamente observável: não apenas uma “expectativa”, que necessita de comportamentos concretos (de formulação, de reação a outros comportamentos) para se atualizar, mas uma comunicação, isto é, o próprio acto na qual a expectativa se atualiza.
Na conceptualização da segunda fase, aliás, a noção que intervém aqui em primeira linha é a noção de código binário “de acordo com o direito/contrário ao direito”. Através do conceito de comunicação jurídica reúne-se assim numa unidade dois fenómenos que, na primeira fase, eram pensados separadamente, o acto (a comunicação) e a expectativa normativa, tratando-se, no entanto, de um tipo particular de expectativa, que se fundamenta especificamente no direito positivo (referência a algo que correspondeu ou não a esta expectativa).
O preço da unidade acto comunicacional/expectativa estabelecida, por assim dizer, é o estabelecimento de uma divisória na qual os trabalhos da primeira fase não insistiam: a diferença entre sistemas sociais e sistemas psíquicos. Ao observar as comunicações, nomeadamente jurídicas, Luhmann pretende fazer abstração das pessoas. Verifica-se assim uma clara deslocação da tónica, nas exposições de Luhmann, entre a primeira fase, na qual se refere frequentemente às pessoas e às suas experiências, e a segunda, na qual se refere a acontecimentos comunicacionais. Identificada esta mudança, pode perguntar-se qual é o equivalente, na segunda fase, à noção de experiência, central na primeira fase. Um possível candidato é a noção de “horizonte da comunicação”: comunicação é seleção e, ao selecionar, está sempre a reproduzir, embora implicitamente, as alternativas não selecionadas. O que dá a sua “espessura” ao que atualmente acontece, não são recordações ou motivações de pessoas envolvidas no acontecimento, é o que não aconteceu (exemplo: uma determinada reforma legislativa optou por uma solução, em detrimento de outras).
Uma reconstituição mais precisa do que corresponderia na segunda fase, segundo este raciocínio, à experiência do direito positivo referida na segunda fase, exige que se tenha em conta a diferença, claramente enunciada na segunda fase, entre o sistema jurídico e o sistema político. Na primeira fase, Luhmann fala da positividade como correspondendo à experiência da alterabilidade do direito. Esta definição é enunciada num contexto em que se fala de legislação (ver supra secção I), pelo que se associa a noção de alterabilidade do direito à noção de reforma legislativa. A noção de reforma legislativa, no entanto, não se deixa relacionar com o binómio “de acordo com o direito/contrário ao direito”.
Para reencontrar o direito, no sentido mais preciso do termo, temos, aplicando a conceptualização elaborada por Luhmann na segunda fase, que distinguir o jurídico do político. Com efeito, face a uma determinada lei, podem evocar-se dois leques de alternativas. Por um lado, uma lei atualmente em vigor pode ser confrontada com os projetos de leis, recentemente rejeitados, ou atualmente em preparação, que atualizam o que se poderia qualificar de “oposições” face à lei. O código binário que está em jogo é assimilável, embora possa carecer de algum ajustamento, ao código “governo/oposição” que identifica o sistema político. Por outro lado, a lei atualmente em vigor destina-se a ser confrontada com situações concretas, às quais terá que ser aplicada. Em muitos casos, esta aplicação não conduzirá a soluções unívocas, mas obrigará a confrontar várias interpretações. Estas várias interpretações são confrontadas em discussões nas quais está em causa a conformidade/não conformidade em relação ao texto legal. Aqui reencontramos a codificação jurídica.
A experiência jurídica da primeira fase é, desta maneira, substituída por uma conceptualização mais subtil. Pode eventualmente admitir-se uma “experiência subjetiva”, uma “consciência do direito” na perspectiva do indivíduo. Esta, no entanto, não tem relevância direta para a atividade social. Relevante para a atividade social são dois “horizontes de comunicação”, isto é, a possibilidade, objetivada em comunicações, de se distinguir entre várias alternativas legislativas e entre várias interpretações da lei atualmente em vigor. O segundo horizonte de comunicação poderia ser qualificado, se se quisesse adotar uma terminologia que faça a ponte entre as duas fases de Luhmann, de “experiência social do direito”.
Pode assim dizer-se que o conceito de comunicação jurídica, em primeiro lugar, capta de uma maneira mais condensada a realidade social do que anteriores conceptualizações, que distinguiam, por um lado, experiência e ação e, por outro lado, diferentes indivíduos. Em segundo lugar, permite lidar com a diferenciação entre sistemas psíquicos e sociais, e entre o sistema jurídico e o sistema político. Uma diferença de outra ordem entre as duas conceptualizações diz respeito ao que se poderia chamar o seu tema dominante. Com o conceito de positivização do direito, Luhmann pretendia dar conta de uma evolução secular. Quis mostrar como formas antigas de direito são progressivamente substituídas pelo direito positivo, necessário a uma sociedade funcionalmente diferenciada. Com o conceito de autopoiesis do direito pretende, fundamentalmente, dar conta do funcionamento atual das sociedades funcionalmente diferenciadas. Esta mudança temática tem, nomeadamente, duas implicações. Por um lado, a questão das causas que conduziram à formação do direito moderno passa para um lugar secundário. Por outro lado, são marginalizadas, na exposição de Luhmann, as outras formas do direito. Aliás, a própria palavra direito, que, na Rechtssoziologie, ainda tem um sentido amplo, e que carece, para designar o direito moderno, de ser incorporada na expressão “direito positivo”, mais tarde designa implicitamente apenas o direito moderno, o “Direito da Sociedade” (moderna, como é óbvio). Trata-se, no entanto, apenas de uma ambivalência, nos trabalhos de Luhmann na sua segunda fase, do termo “direito”. O termo que designa mais precisamente o seu objeto de estudo é o termo “sistema jurídico”. E, ao falar de sistema jurídico, assume que não existe nas sociedades anteriores formas de direito que alcançam o modo muito peculiar de autonomia que Luhmann qualifica de autopoiesis. À volta deste tema central, não deixa de abordar a evolução que conduziu a este sistema, nem de aludir, embora mais brevemente, ao facto de o sistema jurídico não ser hoje nem a única, nem a última forma concebível do direito. Veja-se, a este respeito, a frase final de Das Recht der Gesellschaft: «Pode perfeitamente ser que a atual posição destacada do sistema jurídico e a dependência da própria sociedade e da maior parte dos seus sistemas funcionais no funcionamento do código jurídico não seja mais do que uma anomalia europeia, que, com a evolução de uma sociedade-mundo, vai enfraquecer».
A tonalidade desta última citação evidencia também uma outra diferença entre as duas fases aqui discutidas. Recorde-se que, nos textos contemporâneos da Rechtssoziologie, Luhmann afirma claramente uma posição normativa: a positividade do direito é necessária a um progresso valorizado positivamente e o próprio Niklas Luhmann pretende contribuir para uma melhor positivização do direito. Nos últimos anos, já não encontramos afirmações voluntariosas, mas antes cepticismo, quando não preocupação face às evoluções em curso. A sua contribuição limita-se a participar num esforço de melhor entender estas evoluções. O que, dada a complexidade da sociedade contemporânea, não é pouco.
Para terminar este ponto, deve abordar-se ainda as diferenças entre as duas fases aqui delimitadas que dizem respeito às modalidades do trabalho teórico. Em termos sintéticos, assiste-se a uma integração e sofisticação do aparelho conceptual, acompanhada de uma progressiva alteração do estatuto das referências empíricas. Ilustrarei esta evolução a partir da relação entre direito (positivo) e procedimentos, discutida por Luhmann nas duas fases consideradas. Na primeira fase, o ponto de partida do raciocínio é um dado histórico: o desenvolvimento paralelo de um tipo de direito (experimentado como mutável) e de um tipo de procedimento (assente em papéis diferenciados e ele próprio constituído em instância diferenciada de experiência). Para Luhmann, trata-se de interpretar a relação entre os dois fenómenos (como acabei de recordar: na perspectiva de contribuir para um melhor aproveitamento destes dois dispositivos). Poder-se-á reconstituir o modo de construção desta interpretação nos termos seguintes. Luhmann aplica à realidade observada dois esquemas interpretativos gerais, que considera como complementares.
Um é a noção de função: fenómenos que adquiriram alguma estabilidade num determinado contexto histórico podem ser presumidos como contribuindo para o funcionamento efetivo da sociedade deste tempo. Intervém aqui uma tese mais específica: um desenvolvimento funcional de ordem superior é a diferenciação funcional da sociedade (que permitiu o progresso); nesta circunstância, um fenómeno que se mantém deverá ser abordado à luz da questão: qual o seu contributo para a diferenciação funcional?
O outro esquema interpretativo é o modelo da interação como experiência de dupla contingência (ego nunca sabe precisamente o que alter vai fazer, com que motivações, sabendo no entanto que alter vai antecipar ou reagir ao comportamento de ego, mas, também, sem saber precisamente o que vai ser e que motivações terá). Estes dois esquemas interpretativos vão orientar a formulação de um relato dos factos observados, procurando dar plausibilidade à noção de um estreito relacionamento entre eles: procedimentos criam as condições necessárias para que cada um possa interpretar os comportamentos dos outros como sendo de aceitação das regras procedimentais e de progressiva adesão às questões substanciais em discussão (pelas condições que criam para as interações); sendo possível interpretar desta maneira o efeito dos procedimentos, é plausível que a generalização deste mecanismo se prenda com a necessidade de multiplicar experiências de validade social (legitimidade na terminologia de Luhmann) do direito positivo. Ou seja: os esquemas interpretativos dão um rumo geral a uma exposição que elabora uma formulação mais específica do modelo a partir da descrição dos fenómenos observados.
Na segunda fase, a teoria de Luhmann funciona de maneira muito diferente. Em primeiro lugar, os dois esquemas interpretativos são substituídos por um único conceito: a autopoiesis dos sistemas sociais. Este modelo fundamenta a seguinte abordagem da realidade: se eu posso observar um fenómeno social (inteligível para mim observador, que sabe que não é apenas uma criação do meu espírito, mas algo que se impõe a outros, é que – formulação sofisticada do facto desta consistência da realidade social ser independente das interpretações do sociólogo – há autopoiesis. Trata-se, a partir daí, de recolher elementos de observação que ilustrem e, eventualmente, possam alimentar a noção que se têm da autopoiesis. Neste trabalho, Luhmann socorre-se de quantidade de noções diretamente derivadas do conceito de autopoiesis, tais como, por exemplo, a de código binário e a de programa (estrutura que facilita a aplicação do código binário e cria eventualmente condições para a auto-observação deste processo). Este modelo permite estabelecer uma relação significativa entre, nomeadamente, comunicações concretas debatendo da validade de determinadas pretensões, rotinas procedimentais, práticas argumentativas, etc. Aqui, o relacionamento entre os fenómenos observados não é já construído por assim dizer ad hoc, a partir de uma orientação geral; é derivado diretamente e precisamente do modelo e, eventualmente, confirmado pelos factos.
O resultado desta evolução deixa-se facilmente enunciar nos próprios termos da teoria dos sistemas. Por um lado, os conceitos adquiriram autonomia. São eles que produzem o sistema do seu relacionamento. Será que isto implica um fechamento da teoria? Pelo contrário, na medida em que se continua a confrontar os modelos conceptuais com a realidade, modelos suficientemente precisos para que possam surgir claras discrepâncias em relação aos factos, discrepâncias que estimularão o desenvolvimento de novos conceitos. O exemplo mais óbvio de um tal desenvolvimento é o conceito de acoplamento estrutural.
B - Elementos de interpretação
O trabalho sobre clássicos da sociologia, em muitos casos, tende em evidenciar “a teoria” (no singular) dos autores, procurando reconstituir um sistema de conceitos coerente, correspondendo a uma problemática. Este procedimento pode justificar-se pela necessidade de comparar autores, comparação que é facilitada pela equação “um autor = uma teoria”, ou por inserir-se num trabalho temático no qual interessa principalmente uma parte mais específica da obra do autor, cuja exposição será naturalmente privilegiada. Porém, a leitura atenta de obras que foram produzidas ao longo de várias décadas revela, não raras vezes, alterações nas conceptualizações. Umas vezes mais visíveis (o “Jovem Marx”; a viragem ético-hermenêutica de Foucault), ou até sublinhadas pelo próprio autor (o linguistic turn de Habermas), outras vezes mais discretas (a emergência do conceito de campo em Bourdieu) ou tratadas como fazendo obviamente parte do desenvolvimento da teoria (Parsons).
Quaisquer que sejam as justificações práticas e circunstanciais que podem existir de fazer abstração destas evoluções, relegá-las sistematicamente para o segundo plano significaria um grave empobrecimento do pensamento sociológico. Em abstracto, podem invocar-se três razões pelas quais estas evoluções devem imperativamente ser contempladas tanto no ensino como no momento de referir um autor em relação a um determinado tema. A primeira é que, ignorando as evoluções, se corre o risco de relacionar conceitos em versões não contemporâneas, isto é, que não são relacionadas pelo próprio autor. Os desajustamentos que daí advêm poderão conduzir o comentarista ou a reajustamentos que deturpam os conceitos originais, ou a críticas quanto a incoerências dos modelos analisados que existem efetivamente no material reunido, mas não no pensamento que o autor elaborou concretamente em determinada altura.
Uma segunda razão parece, à primeira vista, relacionar-se mais diretamente com o ensino, mas tem um alcance muito mais amplo. Neste tempo em que é consensual a exigência da aprendizagem ao longo da vida, seria estranho que as personalidades modelares apresentadas aos alunos sejam identificadas com um pensamento imobilizado. Impõe-se, pedagogicamente, mostrar como estes autores evoluíram, lidando com as circunstâncias em que trabalharam, aprendendo com as realidades encontradas e refletindo sobre a experiência do seu próprio trabalho em curso. Esta análise pode levar o aluno ou o investigador individual a uma reflexão individual sobre o seu processo de aprendizagem e sobre a construção do seu percurso de trabalho. Mas também pode alimentar uma reflexão coletiva sobre as condições de desenvolvimento de uma disciplina.
A terceira razão prende-se com as características da realidade social que observamos. Tornou-se num lugar comum afirmar que esta realidade se transforma num ritmo cada vez mais rápido (uma afirmação que mereceria, aliás, ser devidamente justificada e especificada). Nestas circunstâncias, o nosso pensamento tem, necessariamente, que acompanhar esta evolução. Um observador do nosso tempo que o quisesse abordar com uma teoria, eventualmente um pouco retocada no decorrer dos anos, condenar-se-ia a uma rápida perda de contacto com o real. E, de facto, as evoluções teóricas que podemos observar nos autores que mais marcaram os debates recentes têm a ver com evoluções sociais, face às quais procuraram reagir. Uma discussão cuidadosa destas evoluções teóricas poderá não só permitir aproveitar melhor os elementos teóricos mais recentes e, por hipótese, mais imediatamente úteis. Também nos pode dar a ocasião de desenvolver métodos de trabalho teórico simultaneamente adequados a uma realidade em mutação e dotados de um grau suficiente de reflexividade para que possamos continuar, apesar destas mutações, a produzir para nós próprios ferramentas de pensamento.
A evolução teórica de Luhmann que se acaba de reconstituir permite ilustrar estas afirmações. Não retomarei aqui a primeira razão – a necessidade de reconstituir os conceitos prioritariamente no contexto da etapa intelectual em que foram elaborados – pois toda a exposição anterior o deveria ter ilustrado. Vale a pena, em contrapartida, refletirmos sobre as leituras acima propostas à luz das duas outras razões.
Tivemos a oportunidade de ver como uma teoria pode evoluir por uma dinâmica interna. Ao precisar os conceitos e as relações entre estes, Luhmann conseguiu alterar a relação entre a teoria e a realidade observada, possibilitando novas dinâmicas internas à teoria e confrontações mais frutíferas entre esta e a realidade. Este fenómeno mereceria ser aprofundado em relação ao segundo motivo dos que se acabam de invocar. Poderá inspirar reflexões sobre os fatores susceptíveis de favorecer um tal desenvolvimento interno das nossas categorias sociológicas. Alguns podem ser desde já brevemente assinalados:
- A importância que Luhmann concede ao trabalho teórico como um âmbito próprio do trabalho científico, refletindo-o não apenas nos seus aspectos mais abstratos (a teoria como instância de auto-observação de determinados sistemas), mas também nos seus aspectos mais técnicos (atenção para com as distinções, construção dos textos, noção dos vários possíveis estatutos dos textos (exploratórios ou apresentando versões mais acabadas). Uma reflexão que é estimulada pela experiência do trabalho teórico em vários domínios, nomeadamente a comparação entre a teoria do direito e a teoria da ciência.
- O instrumento de trabalho de que Luhmann se dota, as “caixas de fichas”, que lhe forneceram condições materiais para gerir os seus conceitos com um mínimo de desperdício e para os relacionar segundo configurações menos previsíveis.
- Num plano mais abstrato, a maneira como procura, a partir dos anos 80, já não tanto escrever enquanto autor, mas antes fazer o possível para que “a teoria dos sistemas” se faça através dos seus textos. Utilizando as suas caixas de fichas, aliás, Luhmann faz a experiência concreta desta teoria que se pensa a si própria. Mas também pode verificar como os conceitos – que, aliás, muitas vezes retoma de outros autores – são, por sua vez, reutilizados por outros e funcionam eficazmente na escrita destes outros autores. É, assim, não apenas por uma questão de estilo que Luhmann refere nos seus textos a teoria como “sujeito” do trabalho de que dá conta.
A evolução teórica descrita também se deixa relacionar com evoluções históricas das quais Luhmann procura dar conta, o que permite ilustrar o terceiro motivo evocado. Assim, a passagem da positivização do direito, que ainda evoca em primeira linha, de leis susceptíveis de serem revistas, para a autopoiesis do direito, que realça os vínculos entre actos jurídicos sucessivos, deixa-se relacionar com os efeitos da globalização sobre o direito e com o peso crescente do pensamento jurídico anglo-saxónico na cultura jurídica. A separação mais nítida entre o sistema político e o sistema jurídico pode relacionar-se, nomeadamente, com a experiência do protagonismo crescente dos tribunais nos nossos espaços públicos. O cuidado em melhor captar simultaneamente a possibilidade e a improbabilidade de articulações entre sistemas pode relacionar-se com a experiência da distância que observa, nos anos mais recentes, entre os vários sistemas sociais, distância que o levou a abandonar completamente a visão parsoniana de uma sociedade que tenderia para a integração e a insistir nos riscos inerentes à diferenciação funcional. É precisamente face a estes riscos que sente urgência em melhor estabelecer uma teoria, também ela autopoiética, que possa, simultaneamente, garantir a si própria um fundamento e manter-se aberta às transformações da realidade, pelo menos enquanto houver uma sociedade, isto é, possibilidades elementares de comunicação.
Poder-se-ia avançar ainda uma terceira explicação para a evolução do pensamento de Luhmann. Poder-se-ia relacioná-la também, simplesmente, com a complexidade da realidade social e o tempo necessário, seja qual for o grau de redução desta complexidade que se conseguir, para a percorrer com o necessário rigor. Neste sentido, poder-se-ia interpretar as evoluções no pensamento não apenas como impostas por alterações da realidade, mas como dando conta de momentos sucessivos na trajetória do pensador à volta desta realidade.
Como vimos, Luhmann trata sucessivamente as “experiências jurídicas”, tal como podem ser nalguma medida generalizadas num determinado país e numa determinada época, e a “comunicação jurídica” tal como se identifica em todo o domínio do sistema jurídico, isto é, à escala da sociedade-mundo. Desta maneira, Luhmann, depois de se centrar num plano de realidade intermédio que poderíamos chamar a cultura jurídica (pensando em primeira linha na cultura jurídica alemã), afasta-se deste plano para, por um lado, subir ao plano da sociedade-mundo (refletindo nomeadamente as relações entre sistemas sociais funcionalmente diferenciados) e, por outro lado, descendo até à escala das comunicações, que procura captar independentemente das ações às quais as costumamos associar e dos indivíduos que levariam a cabo estas ações.
Não há, para Luhmann, motivo de recuar atrás da conceptualização elaborada na segunda fase. Em contrapartida, a quantidade de observações e intuições que tecem o seu trabalho na primeira fase remetem para realidades que o próprio Luhmann relegou por algum tempo para o segundo plano, mas não esqueceu. Neste sentido, os seus últimos escritos podem ser lidos como a continuação de um percurso que aceitou necessitar de uma vida inteira para visitar – e não completamente–– a sociedade.
E revisitar certos dos seus aspectos mais essenciais. Exemplo disto são as reflexões sobre a evolução que concluem Die Politik der Gesellschaft. Mais diretamente relevante para a sociologia do direito é o regresso ao tema das organizações em Organisation und Entscheidung. Neste livro formula de maneira particularmente clara a necessidade de se pensar a realidade de fenómenos como a ciência e o direito no cruzamento entre sistemas funcionalmente diferenciados a âmbito mundial, mas existindo apenas no plano improvável da comunicação, e as organizações, sistemas mais precários na sua definição comunicacional mas ganhando a sua consistência no seu enraizamento pessoal e local. Este percurso cíclico à volta do social revela-se ainda mais claramente no regresso ao indivíduo nas últimas obras. O tema já tinha sido abordado em Grundrechte als Institution e na conclusão de Legitimation durch Verfahren. Nos anos que se seguiram, no entanto, os indivíduos foram explicitamente excluídos da sociedade, terreno de trabalho prioritário da teoria dos sistemas sociais. O indivíduo regressa na reflexão de Luhmann nos anos 90, repensado nomeadamente a partir da noção de acoplamento estrutural entre sistemas sociais.
E abre a Luhmann novas pistas de reflexão sobre o papel do direito entre indivíduos, por um lado, sistemas e organizações, por outro, e sobre a importância da diferenciação social, e do direito que nela se reproduz, para os Einzelmenschen, uma reflexão que o leva a formular o seu prognóstico mais pessimista: «O pior cenário imaginável seria que a sociedade do próximo século aceitasse o meta-código de inclusão/exclusão. E isto significaria que certos seres humanos seriam pessoas, e outros, apenas indivíduos; que alguns serão incluídos nos sistemas funcionais através das suas carreiras (exitosas ou não) e que outros serão excluídos destes sistemas, tornando-se corpos procurando sobreviver até ao dia seguinte; que certos serão emancipados enquanto pessoas, outros enquanto corpos».
Infelizmente, aqui também, a própria realidade evoluiu num sentido que obrigou Luhmann a realçar um problema que adquire novas proporções. Mas o que faz a força do diagnóstico não é apenas a pertinência da constatação atual, é também a acuidade de palavras que se forjaram em quarenta anos de um longo périplo inquieto por regiões muito diversas da sociedade-mundo.
Jurgen Habermas
Percurso do Autor:
Autor do que muitos afirmam ser o mais elaborado e metódico modelo sobre a sociedade atual, sempre se preocupou em fazer uma teoria da sociedade capaz de refletir o momento.
Com cerca de meio século de produção intelectual, sempre orientada em função da atualidade, é por muitos comparado com **Kant** no que toca à sua maneira de trabalhar: ambos insistem na importância de estar atento à atualidade como forma de conseguir uma cada vez maior autonomia intelectual (só assim se não cede à inércia de ficar “agarrado” ao que outros propõem).
Dado o período histórico que o seu ciclo vital está a abranger, beneficia portanto de um laboratório fantástico para desenvolver esse propósito porque assiste a inúmeros eventos – revoltas estudantis, queda do muro, reunificação alemã e terrorismo RAF, 11/9, invasão norte-americana ao Iraque e a política externa de Bush... – dignos de serem pensados, analisados e, sobretudo, como ele tanto gosta, debatidos. De facto, Habermas fez do debate o seu grande instrumento de trabalho. Ao longo do seu percurso debateu com **Luhmann**, **Foucault**, **Rawls**... considera que só através desta interação é possível entender melhor a própria época e, consequentemente, intervir democraticamente da maneira mais adequada.
No seu percurso intelectual é visível uma bipartição em 2 grandes fases: uma primeira mais política e uma outra mais técnica e conceptual – antes e depois de Maio de 68, integrando-se em cada uma destas, diversas etapas.
Na 1ª fase (antes de 68) há uma clara etapa inicial que corresponde ao lançamento das bases da sua obra e que coincide com o lançamento de Theorie und Praxis (1963). Claramente influenciado pela Escola de Frankfurt cuja pedra de toque era a importância de entender a cultura na sociedade, pois é no seio daquela que se geram fenómenos tão determinantes como o nazismo p.ex, também Habermas vai alertar para a necessidade absoluta de compreender o que se passa no plano cultural para se entender as sociedades modernas, marcadas pelo desenvolvimento econômico cada vez mais próspero que o capitalismo desenfreado propiciou e transformou em autênticas sociedades de consumo. É precisamente aqui que Habermas vai introduzir o conceito de crise, crise que afeta as sociedades contemporâneas nas quais os indivíduos, manipulados pelas instituições, não conseguem realizar as suas necessidades individuais, o que prejudica a integração social.
Segue-se uma segunda etapa, (1965) mais conceptual, onde vai adotar um registo mais técnico e modesto do que o da fase anterior (política), e há basicamente duas motivações para isto: por um lado a vontade de se documentar sobre a produção intelectual que, nos anos 60, já existia no campo da sociologia, e para tal desloca-se aos EUA, por outro, a sua “estratégica e quase forçada saída de cena” do debate político da época, potenciada pelo desencantamento que sentia face ao que ele chamava o “fascismo de esquerda” que se estava a desenvolver e do qual ele, indubitavelmente, se quis demarcar. Este afastamento temporário das lides do debate público vai conduzi-lo até **Luhmann**, conotado como sendo um tecnocrata de direita avesso aos movimentos estudantis que Habermas sempre apoiara, com o qual vai inaugurar um importante e fértil debate sobre os conceitos centrais da sociologia, o qual, simultaneamente o vai reposicionar politicamente à esquerda, à qual sempre pertenceu.
A esta 1ª fase vai seguir-se uma outra, (finais dos anos 70) de cariz mais filosófico e técnico, pois, depois de, na fase anterior, ter dedicado grande parte do seu tempo a investigar e a documentar-se sobre o que de mais relevante se tinha feito no campo das Ciências Sociais, (vg a fase em que entrou a formar parte no Instituto Max Planck), vai sentir-se especialmente motivado para aprofundar o seu trabalho teórico, concluindo, ao fim de 30 anos de trabalho a sua Teoria da Ação Comunicativa (1981), uma obra sociológica ou melhor, uma teoria global da sociedade onde foca a origem, a evolução e as patologias desta. A partir daqui vai passar a trabalhar em dois níveis: intervém em paralelo no debate académico e perante a comunicação social, contra os pós-modernos2, pois defendia que existiam bons motivos para continuar a subordinar os vários domínios da sociedade a uma grande ação coletiva.
É também nesta fase que Habermas vai aprofundar as suas teorizações sobre o Direito e o papel deste na sociedade. Na sua obra Facticidade e Validade (1992) conclui pelo papel crucial que este desempenha nas sociedades complexas enquanto instrumento de comunicação, não só a nível micro, mas também macro, a nível das comunicações entre as sociedades globais3.
Análise do Autor:
O modelo que Habermas propõe na sua Teoria da Ação Comunicativa consiste na concepção **bipartida** das condições de comunicação na sociedade, que decorrem por um lado da sociologia dos sistemas – onde a preponderância cabe aos sistemas econômico e político-administrativo – e por outro, da sociologia da interação, com base na qual Habermas vai conceber a lebenswelt – em inglês “lifeworld”, o “mundo vivido, experienciado, já construído” – que não é mais do que uma realidade na qual o indivíduo tem consciência de si próprio, é o lugar onde os agentes da comunicação se encontram e partilham as suas pretensões, sensibilidades, experiências individuais, falam, comunicam, maxime, interagem. Trata-se de um espaço privilegiado (sobretudo enquanto não “invadido” ou colonizado pela intromissão dos sistemas) onde o indivíduo dispõe de uma margem para definir a sua subjetividade, para se afirmar a se.
Esta racionalidade subjetivista e interna da lebenswelt é complementada, com o intuito de construir uma teoria da sociedade, pela racionalidade dita formal, técnica e burocratizada – weberiana, dos sistemas, bem visível externamente na estrutura das várias instituições.
O essencial no modelo de Habermas é a diferença entre estas duas modalidades de comunicação, o que à partida implica também uma diferenciação da posição do indivíduo face a cada uma delas. Vejamos, se há domínios, como o da vida familiar, em que o indivíduo pode dar largas à sua criatividade, tal já não acontecerá naqueles que estão sob a égide dos sistemas. No entanto, ambas as realidades acabam por se articular entre si – ainda que nem sempre de forma harmoniosa – e a forma mais simples de representar essa articulação é considerar que os sistemas – Economia, Administração, etc, funcionam sem serem (muito) perturbados pela interação entre os indivíduos e que o todo social não pode ser concebido de uma forma tão redutora que ignore o facto de, a par destes, existirem pessoas, sensibilidades, experiências, que igualmente compõem o “social”.
Falar da articulação entre estes dois universos implica referir aquilo que Habermas trata como sendo a “colonização da lebenswelt pelos sistemas”, que acaba por ser a principal causa de relacionamento entre ambos. Sinteticamente esta pode ser descrita como uma “invasão” do espaço de livre realização da subjetividade do indivíduo – lebenswelt - provocada pela expansão e progressivo aperfeiçoamento dos sistemas. Trata-se de duas magnitudes inversamente proporcionais porque, quanto mais os sistemas se desenvolvem, menor é essa zona de subjetividade, ou melhor, maior é a subversão desse espaço4.
O tema do Direito em Habermas – especialmente desenvolvido em Facticidade e Validade, pode ser focalizado como uma das formas de colonização da lebenswelt pelos sistemas5, neste âmbito, o Direito desempenha uma função de juridicização, i.e “torna jurídicos” certos domínios que não eram objeto dessa regulação. Não obstante, o papel do Direito na sociedade não se reduz a este aspecto “menos positivo” e por isso Habermas introduz uma outra distinção, agora relativa a dois diferentes tipos ou funções do Direito:
- O “**Direito-Instituição**” que tem por função criar as condições necessárias para assegurar o desenvolvimento da interação entre os indivíduos e da sua livre subjetividade, basicamente através de dois vetores: um marcado por uma série de princípios constitucionais e legais sobre o direito à privacidade, e outro que radica no reconhecimento da essencial dignidade da pessoa humana e, consequentemente, da igualdade que esta implica.
- O “**Direito-Médium**” que é aquele universo de normas jurídicas que contribuem para o funcionamento dos sistemas6.
Deste modo, será este “Direito-Médium” que, ao operar como mediador na colonização da lebenswelt pelos sistemas, está a prejudicar a esfera da subjetividade.
Esta tese, adotada em 1981, vai ser no entanto rebatida pelo próprio Habermas alguns anos depois. A certa altura toma consciência de que o mecanismo inverso também é válido, i.e, há igualmente um impacto da esfera da subjetividade sobre a dos sistemas que pode significar um condicionalismo para a Administração e o próprio poder. Partindo daqui, em 1992 vai publicar Facticidade e Validade onde apresenta um modelo social reconstruído na parte relativa às relações entre os sistemas e a lebenswelt, denotando um maior equilíbrio: se por um lado aquela condiciona os sistemas, fornecendo-lhes uma série de significados, por outro, os sistemas fornecem à lebenswelt uma focalização mais apurada das coisas, de modo a criar uma experiência comum. O Direito surgiria como o mecanismo unificador desse sentimento de comunidade, coletividade7.
Sistematização do Autor
A tese básica da Teoria da Ação Comunicativa é que a sociedade moderna encontra-se dividida em duas esferas: o mundo da vida (lebenswelt) e os sistemas. Enquanto o mundo da vida, informado pelas convicções formadas comunicativamente e compartilhadas intersubjetivamente, obedece a uma dinâmica consciente e normativa, os sistemas, nomeadamente o sistema econômico e o sistema burocrático, obedecem a uma dinâmica não-consciente e funcional. Habermas alerta para a colonização do mundo da vida pelos sistemas, que submetem os consensos do mundo da vida às suas exigências funcionais.
Convém referir que a sociedade contemporânea é constituída por dois grandes universos, a lebenswelt e os sistemas, sendo que a conciliação entre eles é favorecida por um Direito conscienciosamente aplicado pelos juristas, de três modos distintos:
- Formalista/Legalista, que atende sobretudo à letra da lei, podendo agravar a esfera de insensibilidade dos sistemas face à lebenswelt.
- Providencialista, que consiste numa maneira de aplicar o Direito procurando resolver os casos concretos através de critérios de equidade e justiça social, de modo a diminuir as assimetrias entre as partes em litígio.
- Processualista, que coloca o jurista numa posição privilegiada, pois é a este que cabe aferir se os processos de resolução dos litígios na sociedade são os mais adequados, de modo a garantir-se uma comunicação idônea entre as partes.
Há que distinguir também **Foucault** de **Habermas**. Enquanto Foucault procura destrinçar quais aquelas estruturas de poder que estiveram na base do desenvolvimento das sociedades ocidentais no século XIX, encontrando o seu expoente máximo na panóplia dos sistemas prisionais, Habermas constrói uma teoria da sociedade contemporânea – tendo em vista o período que se segue à IIª Guerra e à génese do Estado-providência – indexando a crise que se vive na sociedade à colonização da lebenswelt pelos sistemas econômico e político-administrativo, a qual conduz aos chamados processos de juridicização levados a cabo pelo Direito positivo, não obstante o indivíduo ainda conseguir salvaguardar alguma autonomia através da sua atividade comunicacional, pelo que ainda há nas sociedades modernas, graças a essa atividade comunicacional, vestígios de resistência a esses ímpetos colonizadores da economia e Administração. Contrariamente, Foucault defende que o poder se manifesta como uma disciplina omnipresente de todas as relações sociais, sendo o indivíduo completamente anulado e arrastado pelas estruturas de poder, e rejeita liminarmente qualquer concepção localizada ou parcelar deste.
Estes diferentes pontos de vista relevam na hora de conceptualizar com exatidão a ideia de social control: numa abordagem foucauldiana, a instigação das revoltas locais contra o poder contribui para a ideia da abolição de um sistema de justiça penal e dos seus mecanismos, o que é de molde ao pensamento dos teóricos do abolicionismo. Por sua vez, uma orientação habermasiana apontará mais realisticamente as potenciais vantagens da existência de certos mecanismos de política criminal, desde que estritamente cingidos às necessidades e circunstancialismos da lebenswelt8.
Notas:
1 Artigo do Prof. Pierre Guibentif
4 Recordar os exemplos do Professor relativos ao lema da Tupperware “faça da sua cliente a sua melhor amiga” prova como o sistema econômico pode subverter o sentido habitual do conceito de amizade, e à reforma, que constitui um exemplo de como a fase da velhice acaba por ser estruturada pelo direito da segurança social de acordo com certos padrões específicos: idade, nº de anos a descontar para a segurança social...
5 Veja-se a juridicização do sistema escolar. Com o aumento da regulamentação diminuíram as relações de confiança pessoal entre professor e aluno.