A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen: Conceitos Essenciais
Classificado em Filosofia e Ética
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Momento Histórico e o Contexto da Teoria de Kelsen
A Áustria, terra de Kelsen, assumiu uma postura de neutralidade diante das demais potências europeias após a Primeira Grande Guerra. O discípulo de Kelsen, Joseph Kunz, clama e destaca a postura nitidamente universal dos austríacos, para que se possa entender a obra de seu mestre:
“[...]Nós, os vienenses de nascimento, somos católicos no sentido da palavra grega, universalistas. [...]Somos universalistas, somos tolerantes, antifanáticos. Amamos a paz. [...] Somos democratas, somos liberais, somos individualistas, somos europeus.”
Isto chama atenção para a neutralidade na obra de Hans Kelsen, em face das ideologias. Na segunda década do século XX, o Direito vivia num verdadeiro caos, estava cercado por psicólogos, políticos e sociólogos. Cada um procurando transpor os muros da jurisprudência para torná-la sua em seus domínios. Somado ao momento de inquietação e conturbação social que a Europa vivia no pós-guerra, em que a estabilidade das nações dependia também da estabilidade jurídica.
O resultado foi Kelsen protestar a favor da dignidade científica do Direito e, então, elaborar uma teoria do Direito capaz de sustentar sua própria juridicidade.
Localização de Kelsen no Positivismo Jurídico
Kelsen se qualifica dentro do positivismo jurídico, mas, já que há teóricos que divergem de Kelsen, sua teoria foi diferenciada e passou a ser chamada de Positivismo Normativista.
Positivismo Jurídico: Conceitos Fundamentais
Pensamento antagônico às teorias naturalista, metafísica, sociológica, histórica e antropológica, é uma corrente de pensamento que fornece uma dimensão integrada e científica do Direito.
Metodologia do Positivismo Jurídico: identifica que o que não pode ser provado racionalmente, não pode ser conhecido.
A diferença entre kelsenianos e não-kelsenianos é que estes reconhecem a interdisciplinaridade do Direito, não dispensando seu caráter científico, enquanto aqueles privilegiam o que está escrito na lei validamente posta.
Normativismo Kelseniano: A Teoria Pura do Direito
Hans Kelsen procura delinear uma ciência do Direito desprovida de qualquer outra influência externa. Ou seja, a Teoria Pura do Direito faz uma análise estrutural de seu objeto, expurgando de seu interior valores como justiça, sociologia, origens históricas e ordens sociais determinadas. Kelsen isola do Direito qualquer indagação do tipo 'por que a norma foi feita?', 'quais interesses ou valores ela encerra?', etc., pois, segundo ele, tais questões pertencem ao campo de considerações próprio da ciência política, da psicologia, da ética e da sociologia. Logo, Kelsen não se importa com o ato de vontade, ou seja, com a vontade contida na lei. Pois o fundamento de validade do Direito não está na origem ou na fundamentação social do ato, mas na própria norma (superior) que o autoriza.
Seu objetivo é empreender uma sistematização estrutural do que é jurídico propriamente dito, fazendo uma descrição do Direito que correspondesse apenas a uma descrição pura do Direito. Ou seja, ele tentou elevar a jurisprudência a um ideal de cientificidade, purificando-a de toda ideologia política e de todos os elementos da ciência natural, excluindo tudo que não pertence ao seu objeto.
É justamente esse isolamento do método jurídico que confere autonomia ao Direito como ciência.
Como ele faz isso: Distingue realidade e Direito, ou seja, distingue ser de dever-ser. É com a quebra dessa relação ser/dever-ser que ele consegue diferenciar o que é jurídico do que não é.
Diferença entre Ser e Dever-Ser na Teoria Kelseniana
Fundamenta-se no ato de vontade (ato por meio do qual a autoridade competente exprime sua vontade a respeito de como os indivíduos devem se comportar, ordenando-lhes, proibindo-lhes ou permitindo-lhes fazer algo) que concebe o Direito como ordem normativa da conduta humana: um sistema de normas que regulam o comportamento humano, o dever-ser.
Segundo Bittar, Kelsen faz essa diferença na mesma medida das ciências sociais (imputação) e ciências naturais (causalidade). Essa distinção é provocada pelos termos causalidade e imputação.
- Imputação (ciências sociais): condição e consequência ligam-se pela imputação de uma sanção a um comportamento na esfera do Direito (nesse caso, a sanção pode ou não ser aplicada).
- Causalidade (ciências naturais): toda causa provoca necessariamente um efeito.
Segundo Lacombe, Kelsen não aceita a distinção entre ciências sociais e ciências naturais porque, para ele, a sociedade pode ser vista como parte da natureza, na medida em que a convivência efetiva entre os homens pode ser pensada como parte da vida em geral.
Kelsen vs. Comte: Positivismo Jurídico e Sociológico
A ciência sociológica é uma ciência do ser, enquanto se preocupa com as conexões causais que se operam entre os fatos, que, para Kelsen, correspondem aos comportamentos jurídicos imputados por um dever-ser.
Kelsen e Savigny: Abordagens Distintas do Direito
Ambos são contra o jusnaturalismo e a favor de uma ordem positiva concreta. A diferença é que, enquanto Savigny não acredita na norma posta, preferindo uma ciência capaz de identificar o verdadeiro e genuíno Direito, Kelsen nega esse papel criativo da ciência em favor da mera descrição da norma posta.
A Atividade do Jurista na Perspectiva Kelseniana
Como tem suas bases no dever-ser, sem influências externas, o jurista deve partir da norma jurídica para chegar à própria norma jurídica dada (sistema normativo: o princípio e o fim de todo o sistema). A lei é um ato de criação do legislador e, uma vez criada, passa a existir, tornando-se sujeita à verificação de sua validade.
Tipos de Indeterminação
Indeterminação intencional é aquela necessária ao aplicador da norma para que este atenda às circunstâncias de quando, onde e como a norma deverá ser aplicada. Já a indeterminação não intencional é aquela que corresponde à pluralidade de significações possíveis das palavras por meio das quais as normas se exprimem (vaguidade e ambiguidade).
Ato Jurídico: Significado e Criação
São atos da vida cotidiana que recebem um significado jurídico (significado esse que é objetivo, conferido pelo próprio ato de sua criação).
Concepção de Estado em Kelsen
A noção de Estado identifica-se com a noção de Direito (ordenamento de normas jurídicas coercitivas da conduta).
Todo Estado é um ordenamento jurídico, mas nem toda ordem jurídica é um Estado, apenas a ordem jurídica centralizada.
Conceito de Validade e a Norma Fundamental
Não significa ser verdadeira ou falsa, mas sim estar de acordo com os procedimentos formais de criação normativa previstos por determinado ordenamento jurídico.
A partir desse conceito, pode-se estudar a norma fundamental (princípio e o fim do sistema jurídico).
Características do Sistema Jurídico
- Unitário
- Orgânico
- Fechado
- Completo
- Autossuficiente
A Pirâmide Normativa de Kelsen
Normas hierarquicamente inferiores buscam seu fundamento de validade em normas hierarquicamente superiores. Isso pressupõe a estrutura piramidal e escalonada da ordem jurídica, com uma norma fundamental no seu ápice, servindo de fundamento de validade a toda a ordem. O ordenamento jurídico resume-se a esse complexo emaranhado de relações normativas. Qualquer abertura para fatores extrajurídicos comprometeria sua rigidez e completude, de modo que a norma fundamental desempenha esse papel importante de fechamento do sistema normativo escalonado. Lógica Formal: Onde há hierarquia, há interdependência entre normas; a validade da norma inferior é extraída da norma superior e assim sucessivamente até a última norma, a norma fundamental. Assim, a norma fundamental não existe fisicamente nem historicamente; ela é pressuposta logicamente. É justamente sobre esse aspecto que se encontra o maior problema da teoria kelseniana: definir o estatuto teórico da Norma Fundamental (sua natureza, função, razão de existência).
Em resumo: O conjunto de normas forma a ordem jurídica, um sistema hierárquico de normas legais que devem ter fundamento em uma norma fundamental. Caso essa norma fundamental não exista, devem-se aceitar pressupostos metafísicos.
Juízos de Valor no Direito: Kelsen e a Norma Jurídica
Valores do Direito: parâmetro objetivo – norma jurídica.
Valores de Justiça: parâmetro subjetivo – dados variáveis e indedutíveis.
Daí resultou que a norma jurídica é a única segurança da teoria do Direito, mas ela está sempre sujeita à interpretação, ou seja, a norma é o esquema básico de interpretação.
Princípio da Eficácia e a Interpretação da Norma
Por existir um consentimento de todas as pessoas em aceitar uma Constituição, esta passa a ser a norma fundamental que deve racionalizar o jurista. Ela pode, através de normas gerais, criar normas individuais através da interpretação, que, para Kelsen, pode ser de duas formas: a interpretação autêntica se localiza na esfera pública e ela cria o Direito e vincula a ação; a interpretação não-autêntica, que se localiza na esfera privada quando o indivíduo é impelido a observar a conduta estabelecida pela lei para escapar da sanção. Interpretar, para Kelsen, é estabelecer a moldura que encampa as várias possibilidades de significação da lei. Dentro da moldura, que corresponde ao texto normativo, encontram-se várias possibilidades de sentido, notando-se que apenas uma delas será preferida pelo órgão aplicador da lei.
Proposição Jurídica vs. Norma Jurídica
A Norma Jurídica é um mandamento, um comando imperativo; por isso, tem um sentido prescritivo. Já a Proposição Jurídica consiste em um juízo hipotético que enuncia ou traduz o sentido de uma norma jurídica, atribuindo-lhes consequências; portanto, tem um sentido descritivo.
A Ciência do Direito na Teoria Pura
Objeto de estudo da Teoria Pura ou Ciência do Direito: o Direito Positivo estuda as estruturas comuns a todos os sistemas.
Relevância para a Teoria Pura
- Validade: existência de uma norma jurídica.
- Vigência: produção de efeitos de uma norma jurídica.
- Eficácia: condutas obedientes e observantes a uma norma jurídica.
A Ciência do Direito não tem caráter vinculativo, pois apenas produz proposições jurídicas descrevendo seu objeto; é a decisão judicial ou administrativa que determinará qual o sentido possível e admissível de uma norma jurídica a ser aplicada num caso concreto.
Justiça, Direito e Moral na Obra de Kelsen
Em seus estudos, mas não dentro da Teoria Pura do Direito, Kelsen discorre sobre o conceito de justiça. Para discorrer sobre valores, ele delimita um campo de seu estudo, que denomina como Ética.
As normas jurídicas são objeto de estudo do Direito, e as normas morais são objeto de estudo da Ética. Por isso, discutir sobre justiça não é discutir sobre Direito, já que as normas jurídicas são normas sociais que, por sua vez, são normas morais e, por isso, devem ser estudadas pela Ética.
A Teoria das Sagradas Escrituras e a Justiça
Kelsen tenta definir justiça através dos textos bíblicos, mas percebe que a fé não garante certeza à ciência. Sua pesquisa desenvolve-se no sentido de mostrar as incongruências textuais dos textos sagrados, sobretudo aquelas entre o Antigo Testamento (que discorre sobre o princípio da retaliação ensinado por Javé) e o Novo Testamento (que fala sobre a lei do amor e do perdão ensinada por Cristo). Para ele, existe uma contradição, já que a diferença é muito acentuada entre os ensinamentos da lei mosaica (Moisés e Decálogo), a doutrina cristã (Jesus Cristo e sua pregação) e os ensinamentos paulinos (Paulo de Tarso e suas cartas e exortações). Isso mostra uma falta de homogeneidade na palavra revelada.
A Teoria Platônica da Justiça na Visão de Kelsen
Kelsen tentou responder à questão 'O que é justiça?' sem se basear em textos bíblicos, mas sim em concepções filosóficas. Segundo Platão, justiça é uma virtude (conhecimento). Para esse filósofo, tudo que é material é efêmero, e tudo que é só pode ser se for inefável, transcendente. Nesse sentido, o Direito Positivo deve ser obedecido, pois seu fundamento está na transcendência da própria justiça absoluta. A justiça ganha um valor destituído de conteúdo natural e humano. Esse pensamento é criticado por Kelsen.
A Teoria Aristotélica da Justiça e a Crítica de Kelsen
Justo Total (Legitimidade)
- Justo Natural
- Justo Positivo
- Justo Particular
- Justo Distributivo (igualdade geométrica)
- Justo Comutativo (igualdade aritmética)
Falha dessa teoria: Segundo Kelsen, Aristóteles se preocupou demais com a identificação de espécies e subespécies, tipos e classificações, e perdeu sua importância prática. Aristóteles discorria sobre justiça para a necessidade de amizade; com isso, ele deixa de defender o que é justiça, remetendo-se para o problema da amizade.
A Teoria Jusnaturalista sobre Justiça
O jusnaturalismo não estaria apto a responder ao desafio do que seja a justiça, porque, para ele, a natureza é a norma fundamental para todo o ordenamento jurídico e, ao se identificar justiça e natureza, ocorre uma confusão imperdoável entre valor (dever-ser) e fato (causa e efeito).
Justiça para Kelsen: Relativismo e Validade
Por não conseguir definir a justiça por meio de pensamentos já existentes, Kelsen então elabora sua própria teoria sobre a justiça. Em seus estudos, publicou 'O que é Justiça?' e 'A Justiça, o Direito e a Política no Espelho da Ciência', em que divide a Justiça em:
- Racionalista (Aristóteles, Kant...)
- Metafísico-religiosa (Platão, Jesus...)
A justiça, para ele, deve ser um valor inconstante, relativo, dissolúvel e mutável. Para ele, não existe justiça absoluta (aquela que se conhece com base em pressupostos metafísicos e não científicos) e, por isso, sua doutrina baseia-se em justiça relativa. Seu relativismo está no fato de que ora a lei avalia uma conduta como boa, ora a conduta pode ser vista como má, em função de novas leis que vêm surgindo e substituindo as leis antigas.
Desvincula validade de justiça, já que, para ele, validade é aquilo que está de acordo com os modos de existência normativa de dado ordenamento, e o que é justo está no plano da especulação. Assim, é válida a ordem jurídica ainda que contrarie os alicerces morais. Com isso, uma norma pode ser: válida e justa; válida e injusta; inválida e justa; inválida e injusta.