A urbanização de São Paulo e seus rios: um olhar crítico

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Entre Rios’, um minidocumentário, conta a história da urbanização da metrópole paulistana a partir das violentas modificações dos cursos naturais dos rios que por aqui passavam até o século XIX. Retificações, canalizações, aterragens são algumas das obras que o capital industrial e imobiliário da cidade promoveu, como no caso do Rio Tamanduateí, para que fossem “criadas” novas terras e lotes para arrendamento. Às vezes, temos a impressão de que a urbanização é um desenvolvimento quase natural da sociedade. O filme, ao explorar justamente um ente da natureza – as águas na antiga Vila de São Paulo de Piratininga –, demonstra que esse processo de natural não tem nada. Pelo contrário, é fruto do planejamento estatal aliado ao empresariado, para extrair riqueza do meio urbano e fazer de São Paulo uma autêntica cidade de propriedades privadas e automóveis. Do mesmo modo, ainda falamos das enchentes típicas do verão como se fossem consequência do excesso de chuva – noção que o filme também aponta como produto das escolhas e obras feitas no século passado, “erros” voluntários dos dirigentes da cidade, que se repetem continuamente até hoje. Os 25 minutos de história sobre São Paulo, recheados de depoimentos de arquitetos, geógrafos, historiadores e engenheiros, são valiosos como ilustração de como uma metrópole desigual, poluída, interditada de carros, com problemas seríssimos de enchente, foi construída para o propósito do lucro, independentemente dos impactos trazidos à natureza e à qualidade de vida da maioria de sua população. Com a industrialização e a chegadas das máquinas, especialmente a estrada de ferro, a pesca nos rios de SP deixou de ser tão importante como no passado, uma vez que os peixes passaram a vir diretamente do mar através de trens. Os rios, assim, passaram a ser vistos mais como barreiras ao progresso do que como promotores de desenvolvimento. Com a chegada do automóvel, a situação se agravou ainda mais. O vídeo mostra o embate “técnico” entre duas visões bastante diferentes sobre como o desenvolvimento de SP e sua relação com seus rios deveriam ser conduzidos. Por um lado, Saturnino de Brito, engenheiro sanitarista, defendia a recuperação das margens dos rios (que àquela altura já estavam poluídos e gerando problemas de saúde pública) e a manutenção de áreas verdes ao longo dos cursos d’água, para que estes pudessem transbordar quando não pudessem comportar a quantidade de água que recebiam. Com efeito, como também é explicado no vídeo pela Geógrafa Odete Seabra, os rios de planície como os de SP são lentos e de formas sinuosas, podendo até mesmo mudar o seu curso de uma cheia para outra. Ou seja, não possuem um leito fixo e bem definido, sendo suas cheias processos naturais.De outro lado, Prestes Maia, que foi prefeito de SP de 1938 a 1945, que defendia um projeto de “modernização” da cidade que incluía a abertura de grande avenidas que formariam uma estrutura radioconcêntrica. Essas avenidas seriam criadas justamente nos vales dos rios que, por serem áreas não adequadas para urbanização, permaneciam menos urbanizados, gerando economia nas desapropriações necessárias para a viabilização. Aliado a isso, essas áreas seriam aterradas e loteadas, gerando lucros para a municipalidade. Não é difícil imaginar que esta segunda via, apesar de todos os seus problemas, foi a adotada.Isso nos faz refletir sobre uma questão crucial para nós, enquanto planejadores urbanos, que é a possibilidade (ou não) de realmente influenciar nas decisões que são tomadas relativas às cidades. Muitas vezes é passada a falsa impressão de que as decisões técnicas são automaticamente implementadas, e que os problemas existentes nas cidades são decorrentes de um mau planejamento ou de simples incompetência do corpo técnico responsável. Dificilmente fica claro para a população em geral as dificuldades pelas quais esses técnicos passam, e como suas recomendações são tratadas nos longos processos de decisões envolvendo intervenções urbanas, e na sua implementação posterior. Minha hipótese é de que, para a sociedade em geral, a impressão dominante sobre essa influência dos técnicos é extremamente exagerada, infelizmente.

A realidade é bem mais complexa e o papel que os técnicos têm nas decisões, que é um processo político, é na maior parte das vezes muito mais tímido do que possa parecer. Esse vídeo mostra bem esse conflito, em que uma visão mercantilista e que favoreceria apenas uma pequena parcela da população (especialmente empreiteiros e proprietários de terras) acabou prevalecendo sobre uma visão mais tecnicamente correta, que pensava as consequências das decisões em termos de uma parcela maior da população, e num horizonte de tempo mais amplo. Com o passar dos anos, os rios passaram a ser vistos como obstáculos para os projetos de expansão da cidade. Na década de 1920, a região recebeu aterro e foram criados os parques Anhangabaú e Dom Pedro II. A cidade se desenvolveu a partir de projetos de canalização de rios e córregos e abertura de avenidas, como as marginais Tietê e Pinheiros, com prioridade para o transporte de automóveis. As águas passaram a correr por baixo das grandes rodovias. O Rio Tamanduateí é hoje aquele canal que passa ao lado do Mercado Municipal, no Centro. Os impactos do modelo de desenvolvimento urbano são sentidos diariamente, seja no frequente congestionamento de veículos que trafegam pela cidade, seja nos alagamentos que tomam conta das ruas em dias de chuva, restando como desafio pensar soluções para o futuro da capital paulista.

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